A Onça e a Diferença

Prólogo: Sobre Lévi-Strauss e vice-versa
[]

(de um rascunho originalmente autorado por Eduardo Viveiros de Castro)

Fail again. Fail better. (S. Beckett)


Uma maneira de situar este estudo sobre o pensamento dos povos nativos da floresta amazônica — um ‘pensamento selvagem’ — é dizer que seus temas estão radicados no estruturalismo, mas que seus problemas são, ao menos em parte, outros, pois outros são os tempos, e outro o estado do conhecimento etnológico. Digamos, então, que seu ponto de partida é o ponto de chegada de Lévi-Strauss, o estado a que ele soube levar a etnologia ameríndia (um subtítulo ou sub-subtítulo que cheguei a considerar por algum tempo era “variações lévi-straussianas”). Por isso, pareceu-me apropriado abrir este prólogo por uma conclusão — de Lévi-Strauss. Nas linhas finais do posfácio a um volume recente de L’Homme, dedicado aos avanços na teoria do parentesco, o decano do americanismo observa:


É digno de nota que, a partir de uma análise crítica da noção de afinidade, concebida pelos índios sul-americanos como ponto de articulação entre termos opostos: humano e divino, amigo e inimigo, parente e estrangeiro, nossos colegas brasileiros tenham vindo a extrair o que se poderia chamar de uma metafísica da predação. Os sul-americanistas presentes neste volume (…) não ficaram atrás.[Nota 1] Sem dúvida, essa abordagem não está livre dos perigos que ameaçam qualquer hermenêutica: que nos ponhamos insidiosamente a pensar no lugar daqueles que acreditamos compreender, e que os façamos dizer mais, ou outra coisa, que aquilo que eles pensam. Ninguém pode negar, porém, que ela não tenha transformado os termos em que se punham certos grandes problemas, como os do canibalismo ou da caça de cabeças. Dessa corrente de idéias, resulta uma impressão de conjunto: quer nos regozijemos, quer nos inquietemos, a filosofia está novamente no centro do palco antropológico. Não mais a nossa filosofia, aquela de que minha geração queria se livrar com a ajuda dos povos exóticos; mas, em uma notável reviravolta, a deles (Lévi-Strauss 2000: 719–20).
Nota 1. I. Daillant, D. Karadimas, A. Surralès, A.–C. Taylor. A menção de Lévi-Strauss aos pesquisadores brasileiros alude às referências presentes nos artigos destes americanistas franceses.


Não sei se todos os colegas brasileiros em que pensava o autor se reconheceriam em tal retrato. Mas o colega que escreveu o presente texto [EVC], ao menos, não saberia resumir melhor a origem do percurso que o levou até aqui, os perigos envolvidos na empresa, e a ambição que o tenta. A Onça e a Diferença consiste exatamente em um esforço de formulação dos pressupostos ontológicos da socialidade amazônica (que incluem o que Lévi-Strauss chamou de uma metafísica da predação, mas não se reduzem a ela), e seu propósito último é de fato lançar alguma luz sobre a dimensão propriamente filosófica do pensamento indígena. É perigoso tentar uma ‘hermenêutica’ da passagem acima; pode-se acabar fazendo-a dizer mais, ou outra coisa, que aquilo em que seu autor estava pensando. Mas não há como negar que ela transpira uma certa ambiguidade. Esta não diz respeito aos riscos do uso do discurso indireto livre e da interpretação anagógica, que são apontados sem rebuço, e são bem reais (o que não quer dizer que não valha a pena corrê-los). Sem dúvida, poderíamos recordar que o próprio Lévi-Strauss já achou necessário precaver-se contra a suspeita de projeção interpretativa. [Nota 2] Mas sua argumentação não nos protegeria: ela apelava para a unidade última do espírito humano, tema que não desempenha qualquer papel nas páginas a seguir. Para este livro, ao contrário, a divergência entre o pensamento ameríndio e a vulgata cosmológica de que se alimenta a antropologia é justamente um dos problemas a explorar. O perigo, neste caso, é menos o de fazer os índios “dizerem outra coisa que o que eles pensam”, e mais o de insistir que eles dizem outra coisa que o que nós pensamos. (Ou que eles pensam outra coisa que o que nós dizemos).

Nota 2. Pense-se no célebre plaidoyer de O cru e o cozido: “No uso que fazemos do método, seremos certamente acusados de interpretar e simplificar excessivamente. À parte o fato de que, repita-se, não pensamos que todas as soluções propostas tenham o mesmo valor… seria hipócrita não ir até o fim em nosso modo de pensar. Responderíamos, então, a nossos criticos eventuais: que importa? Pois, se a finalidade última da antropologia é contribuir para um melhor conhecimento do pensamento objetivado e de seus mecanismos, tanto faz, para este livro, que seja o pensamento dos índios sul-americanos que tome forma sob a ação do meu, ou o meu sob a ação do deles. O que importa é que o espírito humano, indiferente à identidade de seus mensageiros ocasionais, manifeste uma estrutura cada vez mais inteligível, à medida em que progride a operação duplamente reflexiva de dois pensamentos agindo um sobre o outro, e dos quais ora um, ora outro, pode ser a mecha ou a fagulha de cujo contato brotará sua comum iluminação” (L.–S. 1964: 21).


A ambiguidade da passagem citada está na sentença final, e envolve, ali como em tantos outros momentos de sua obra, a relação de Lévi-Strauss com a noção de ‘filosofia’. Sabe-se como esse antropólogo sempre guardou suas distâncias face à academia filosófica (veja-se o cap. VI de Tristes Tropiques); como, desde cedo, contrapôs seu entusiasmo pelas ciências do inconsciente a seu desprezo pelas filosofias da consciência; e como, há pouco, ele exprimiu sua consternação diante das tentativas de recuperação antropológica de temas e estilos filosóficos que lhe pareciam haver sido sepultados pelo estruturalismo (L.–S. 1998). A idéia de que a filosofia tenha voltado ao proscênio antropológico é-lhe certamente mais inquietante que alvissareira. E inquietante, talvez, mesmo que não seja a nossa que tenha voltado, mas a daqueles povos exóticos que o haviam ajudado a livrar-se dela. [Nota 3] Pois é difícil que a filosofia desses povos passe ao primeiro plano sem que à nossa isso não acabe aproveitando; e de qualquer modo, de que serviria ter-se livrado de uma filosofia, se era para cair nos braços de outra?

Nota 3. A expressão “uma notável reviravolta” da passagem citada — no original, “un frappant retour des choses” — não deixa de trazer à mente o título da resposta de seu autor, dois anos antes, a um artigo que pretendia jogar-lhe contra Merleau-Ponty: “Voltas atrás”, Retours en arrière (L.–S. 1998). Título ele próprio ambíguo, evocando tanto uma lamentável regressão intelectual como uma recordação saudosa de personagens e debates do passado.


Ambiguidade indubitável, portanto, frente à reviravolta notável. Isso posto, dar à observação de Lévi-Strauss uma interpretação ‘a favor’ do objetivo visado no presente estudo não é, pensamos, pôr-se a pensar insidiosamente no lugar do mestre francês. Pois foi ele mesmo quem insistiu sobre a necessidade de se abrir espaço, no centro do palco, para uma filosofia selvagem:

Entre a absurdidade radical das práticas e crenças primitivas proclamada por Frazer, e sua validação especiosa pelas evidências de um pretenso senso comum invocado por Malinowski, há lugar para toda uma ciência e toda uma filosofia (L.–S. 1962b: 99).

Resta que, entre essa ciência e essa filosofia, Lévi-Strauss sempre optou pela primeira. Ela é o tema privilegiado, por exemplo, de O pensamento selvagem, livro que procede a uma série de paralelos entre a ciência moderna e a ciência primitiva, e que pode ser lido como uma espécie de ‘epistemologia do concreto’ (tomando-se ‘epistemologia’ no sentido francês). Já a filosofia selvagem propriamente dita, enquanto atividade intelectual distinta da ciência, movida por outras intenções e operando com outros objetos, recebeu um tratamento bem menos sistemático por parte do autor. No caso do livro citado, o lado ‘não-científico’ dessa filosofia (seu pólo sacrificial antes que seu pólo totêmico, digamos) vê-se assimilado à religião, dimensão que constitui, aos olhos de Lévi-Strauss, um verdadeiro império do não-senso. Entre a ciência e a religião, em suma, o lugar da filosofia selvagem na obra lévi-straussiana parece bastante instável.[Nota 4]

Nota 4. O que talvez reflita uma imagem tradicional da filosofia não-selvagem, que faz dela uma etapa evolutiva entre a Religião e a Ciência. Ver as últimas págs. de Du miel aux cendres: mito —>filosofia—>ciência, ou Tristes Tropiques p. 63, sobre a ciência substituindo a filosofia. E sobre a imagem tradicional da ciência em CLS, ver Latour, Faîtiches p. 89 e 89 n.4.


Há porém um momento, e largo, dessa obra no qual se pode entrever a perspectiva de uma filosofia selvagem em particular: a dos povos indígenas americanos. Referimo-nos ao momento representado pelos quatro volumes das Mitológicas e os três livros que as completam (A via das máscaras, A oleira ciumenta e História de Lince). Dizemos que se pode, apenas, entrevê-la, porque tal perspectiva permanece em estado não-cristalizado, é uma virtualidade difusa ou dispersa nas análises mitológicas empreendidas nesses estudos. à parte certos motivos recorrentes, e absolutamente cruciais — como o problema do contínuo e do discreto que atravessa a tetralogia, ou as referências ao desequilíbrio dinâmico das oposições acionadas pelos mitos —, a significação filosófica da mitologia americana encontra-se como que imprensada entre, de um lado, a minuciosa contextualização etnográfica do conteúdo das narrativas, e, de outro, a demonstração de seus valores formais e da combinatória intertextual onde radicam.

  • [Além disso, os ditos motivos recorrentes são objeto de uma localização ontologicamente ambígua por parte de CLS: inconscientes ou quase, refletindo as exigências de qualquer pensamento ou uma ideologia ameríndia, etc.]
  • E ainda assim, ver passagens espalhadas por toda a obra mitológica como aquela d’A Gesta de Asdiwal (ASII p. 212 ) onde CLS sugere que, pour ‘nos indigènes’, ‘le seul mode positif de l’être consiste en une négation du non-être’… (o que nos leva ao “eu sou o que eu não sou não é” de Os Mortos e os Outros) OMT 230: ‘les schèmes fondamentaux de la pensée américaine’… HL: sources philosophiques et éthiques… PJ 216: problème logique et philosophique…

O propósito do presente estudo é cristalizar essa perspectiva e atualizar essa significação virtual. Trata-se de formular os problemas filosóficos adequados a certos temas cosmopráticos identificados nas Mitológicas, entre os quais se encontram, para evocarmos a citação que abria este prólogo, a questão da afinidade e o motivo da ‘predação’. É essencial que tais problemas encontrem apoio na etnografia e permitam dar sentido a outras dimensões, não-discursivas ou não-mitológicas, isto é, que sejam, eles próprios, problemas indígenas. Com efeito, como observou Lévi-Strauss, é a filosofia ‘deles’, não a ‘nossa’, que está em cena, ainda que seja preciso utilizar algo do vocabulário da segunda para poder falar da primeira. Ao tentar fazer isso, entretanto, estaremos necessariamente nos afastando dos limites que Lévi-Strauss se impôs. Pois a relativa ausência de foco sobre a filosofia ameríndia nas Mitológicas é o resultado de uma posição firmada de seu autor, segundo a qual “os mitos não dizem nada capaz de nos instruir sobre a ordem do mundo, a natureza do real, a origem do homem ou o seu destino” (L.–S 1971: 571; eu grifo) [ver A. Green in Temps de la Refléxion 1980, sintomático: “cela va de soi”… A síndrome do ‘todo mundo sabe que…’ Quem é mesmo que a analisa? Deleuze em Diff et Repét.?]. Em troca, prossegue ele, os mitos nos ensinam muito sobre as sociedades de onde provêm, e, sobretudo, sobre certos modos fundamentais (e universais) de operação do espírito humano (loc.cit.). Vale notar que tal afirmação é feita no contexto de uma resposta particularmente dura a certas críticas filosóficas dirigidas ao estruturalismo (as acerbas páginas 570-75 do ‘Finale’ de L’Homme nu); ou talvez devéssemos dizer, a certas críticas teológicas, pois é em Paul Ricœur que o autor parece, aqui, estar pensando. Essa idéia de que os mitos não nos dizem nada de instrutivo sobre seu objeto (a ordem do mundo, a origem do homem e a natureza do real) mas apenas sobre seu sujeito (a sociedade indígena e a mente humana) é muito complicada.

  • lembrar da passagem do CC onde o mito apresenta uma “imagem do mundo já inscrita na arquitetura do espirito”, i.e. da idéia de que o mito é um ‘saber sobre as categorias’ e não um ‘saber sobre o real’, para falarmos agora como Smith & Sperber 1971.} {Saber sobre as categorias é um ‘saber semântico’ sensu Sperber, versus um ‘saber enciclopédico’, saber sobre o real? Ou é um ‘saber simbólico’?} {O problema geral dessas oposições é, naturalmente, seu dualismo ontológico e epistemológico: sujeito/objeto, mente/mundo etc.]
  • Ver Latour, Faitiches, para a reexistencialização de coisas como divindades etc., pp. 82-ss.

Em primeiro lugar, a sociedade e o espírito são, como Lévi-Strauss não cansa de lembrar, parte do mundo e da natureza. Em seguida, e mais importante, a questão de saber o que os mitos dizem de proveitoso para os sujeitos que os contam, antes que apenas sobre eles, permanece em aberto; resolvê-la afirmando que os mitos existem para resolver contradições (L.–S [1955]: 254) é certamente insuficiente. Por fim e sobretudo, a alternativa proposta é demasiado drástica. Para fazer com que os mitos nos ensinem algo sobre a sociedade e a mente, não é necessário decretar primeiro que eles não nada nos ensinam sobre o mundo e o real — como se, caso o fizessem, estivessem então a validar alguma verdade transcendente, um sentido oculto e numinoso. [afinal, a ciência também deve poder nos ensinar algo sobre a sociedade e a mente…] Não se pode esperar dos mitos, diz nosso autor (1971: loc.cit.), “nenhuma complacência metafísica; eles não virão em socorro de ideologias extenuadas”. Com certeza, não se pode esperar nenhuma complacência dos mitos indígenas para com a nossa metafísica; mas daí não se segue que se possa esperar deles que não exprimam suas próprias exigências metafísicas, nem que estas não sejam um objeto antropológico e filosófico interessante. Tão interessante, por exemplo, quanto nossa já algo extenuada ideologia da Ciência, e suas idéias perfeitamente metafísicas sobre uma “ordem do mundo” e uma “natureza do real”. [Nota 5]

Nota 5. Note-se que o último livro mitológico do autor, o História de Lince, é introduzido por uma declaração que não deixa de destoar daquela de 1971, parecendo assumir a idéia de uma filosofia especificamente ameríndia, distinta do, digamos, metabolismo basal do pensamento selvagem: “[C]reio que é possível, hoje, remontar até às duas fontes, filosófica e ética, do dualismo ameríndio” (1991: 16). Uma notável reviravolta?


  • [E na verdade, a obra de LS abunda em passagens que falam de uma filosofia selvagem etc. A de Lévi-Strauss no prólogo do presente livro, que se liga ainda àquela sobre as Mitológicas serem o mito da mitologia, ou o Edipo de Freud ser mais uma versão do mito, bem como toda a convergência implícita entre as preocupações de CLS com o contínuo e o descontínuo e o que ele acha nos mitos (e ver Schrempp), ou a delaração citada em ED infra sobre a ciência social do observado etc., ou o que diz de Bergson e do totemismo in TH, dos Jívaro e de Freud in PJ, do mito de Haburi e de Rousseau in MC (p.155-6) ou sobre, ainda, o mesmo Rousseau e os mitos ‘paleoliticos’ (MC p. 259-60 — este último trecho deve ser transcrito, e contrastado com o uso despiciendo que faz da comparação entre os Jívaro e a psicanálise na PJ) etc., ou o que diz em HN p. 598, que a mitologia, implícita ou explícita, releva de uma filosofia natural — tudo isso não seria mais um argumento para pôr em, precisamente, continuidade mito e filosofia, i.e. para calçar a idéia do ‘tomar o discurso do outro no mesmo plano que o nosso’, acima? [Se a história é um modo do mito, pq a filosofia não o seria?] E notar como isso vai contra o cientificismo objetivista de CLS…] Além disso, mencionar que CLS foi quem primeiro nos descortinou a filosofia ameríndia [o mesmo e o outro, o contínuo e o discreto, o ser e o devir — não são estas questões indígenas tanto quanto nossas?]; e que se recuso algo de sua obra hoje, é precisamente aquela filosofia de que ele não se livrou ao entrar em contato com os índios — a sua metafisica pessoal, seu racionalismo materialista, seu cientificismo etc. (ver adiante)] Isto para não falarmos de passagens das Mitológicas onde os mitos são ditos anteciparem a ciência do futuro, em lugar de serem meros índices do cérebro e do socius: ver pp. 246-7 do CC, onde é dito que a lógica das qual. sensíveis sobre que se constroem os mitos não distingue entre os estados da subjetividade e as propriedades do cosmos [o sensível e o inteligível, ele diria alhures, e em uma entrevista no MagLit. Hors-série n.5, a entrevista a G. Kutukdjian que também se contradiz internamente de modo notável, cf. p. 53 e 54.], Esta distinção, diz ele, corresponde a uma etapa determinada do desenvolvimento da ciência, e está votada, em direito senão de fato, a desaparecer. ‘Sous ce rapport, la pensée mythique n’est pas pré-scientifique; elle anticipe plutôt sur l’état futur d’une science que son mouvement passé et son orientation actuelle montrent progressant toujours dans la même direction’. A mesma posição, de que a ciência do futuro vai reencontrar o saber do passado, está desenvolvida em HN p. 569-70, mesmo lugar onde, ao mesmo tempo e entretanto (…), o autor afirma que o saber científico é “um modo de conhecimento cuja absoluta superioridade é incontestável”), e que não é preciso tratar com condescendência ou desdém este saber para “concéder la richesse des civilisations différentes de la nôtre”.
  • Todo o problema, tanto dos clear-sighted men como dos muddle-headed men, está em imaginar que condescendência e desdém possam ser modos de tratar o que quer que seja: “Clear-sighted men, of the sort who are so clearly wrong, now proclaimed that the secrets of the physical universe were finally disclosed. […] On the other side, muddle-headed men muddled themselves into the most indefensible positions.” (Whitehead, Science & the modern world, p.103)
  • Esta passagem de HN 571 se liga a toda uma série de passagens da série mitológica de CLS (MC 302-5; OMT 160; HN 620; HL 251-55) sobre o “sentido da mitologia geral”, sobre a relação inversa entre extensão e compreensão, o caráter vácuo da mitologia geral, sobre os mitos não querem ao final dizer nada, sendo na verdade apenas máquinas de funcionamento à vide do espírito humano, etc. Isso se liga ao fato de que a análise do mitos, à medida que subimos em escopo e generalidade comparativa, começa a ver seus caminhos e conexões densamente ligadas (tudo leva a tudo), e com essa perda de redundância instaura-se o grau zero da informação. “Que chacun trouve dans les mythes ce qu’il y cherche prouve que rien de tout cela n’y est”. (HN: 253) – comparar isso com Nieztsche e os “incontáveis sentidos” , com a advertência reflexiva de Ingold no começo de seu livro de 2000, etc.


Lévi-Strauss ofereceu uma formulação bem mais instigante em seu famoso artigo de 1955 sobre a estrutura dos mitos. Em lugar, diz ele, de opor a mentalidade primitiva e o pensamento científico como se dois modos qualitativamente diferentes de pensar os mesmos objetos — o mesmo mundo —, é preciso pôr a diferença no mundo. Pois não são as “operações intelectuais” que diferem, mas “a natureza das coisas sobre as quais incidem essas operações”:

Descobri-se-á, quem sabe, um dia, que a mesma lógica subjaz ao pensamento mítico e ao pensamento científico, e que o homem sempre pensou igualmente bem. O progresso — se é que o termo poderia, nesse caso, aplicar-se — não teria, então, a consciência como seu teatro, mas o mundo, onde uma humanidade dotada de faculdades constantes se encontraria, no decorrer de sua longa história, constantemente às voltas com novos objetos (L.S. [1955]: 255).[Nota 6]
Nota 6. Esse argumento, e a passagem mesma de CLS, talvez tenham sido inspirados por uma passagem de Les deux sources…: “[A] estrutura do espírito permanecendo a mesma, a experiência adquirida pela gerações sucessivas, depositada no meio social e devolvida por este meio a cada um de nós, deve bastar para explicar por que não pensamos como o não-civilizado, por que o homem de outrora diferia do homem atual. O espírito funciona do mesmo modo nos dois casos, mas ele não se aplica, talvez, à mesma matéria, provavelmente porque a sociedade não tem, aqui a lá, as mesmas necessidades” (Bergson [1932]: 107).


  • Essa idéia de "A Estrutura dos mitos" vai reaparecer na Pensée sauvage com o argumento de que o pensamento científico e mítico são ‘igualmente válidos’, mas apreendem o mundo em níveis diferentes etc.]

Não seria portanto a consciência que varia, mas o mundo? Ora, mas os mitos amazônicos ‘dizem’ exatamente isso. E vão mesmo adiante, pois a idéia de um sujeito dotado de ‘faculdades constantes’ a braços com uma diversidade objetiva é generalizada, por eles, para além da espécie humana como personagem e da história como palco. O que nos leva a especular que os mitos dizem, afinal, algo de instrutivo, sobre a ordem do mundo e sobre o espírito humano. Esta, então, nossa questão: antes que as ‘operações intelectuais’ do pensamento ameríndio, trata-se de tentar divisar a natureza das coisas que ele pensa, seus objetos — isto é, seus conceitos —, e o mundo descrito por esses conceitos. Em outras palavras, trata-se de prestar atenção ao que dizem os discursos amazônicos sobre a ordem do mundo e a natureza do real, o que inclui o que eles dizem sobre a sociedade e o espírito humanos: não indiretamente e como que à sua revelia, em benefício de nossas filosofias do espírito humano, mas textualmente e como que deliberadamente, para o governo filosófico dos povos que os enunciam. E o que eles dizem — se preferir o leitor, o que eles ensinam — é que não há por que escolher, pois não há como separar, entre a natureza do real e o espírito humano, a ordem do mundo e o movimento da sociedade. O que vem a ser outra idéia muito complicada. A Onça e a Diferença consiste em seu desenvolvimento, defesa e ilustração.