A Onça e a Diferença

Projeto_AmaZone Página anterior: O solo etnográfico do perspectivismo (1)


O registro etnográfico (continua)[]

Pesca matinal

The Mythologiques, of course, include abundant materials relevant to our theme. [cf. CC p. 83n.1; p.93-94 n.1; p.129 M37; p. 267 as miçangas do tapir (e o ciclo do timbó); MC p. 155 e as ‘pirogas’ dos patos; HN p. 101-102, 109-111, sobre o que eu chamaria de perspectivas estruturais, i.e. no plano da narração mítica; HL passim, com destaque para: (1) o perspectivismo das cabras montesas (p.97-ss); (2) as abundantes referências às trocas de roupa e metamorfose, no contexto de um dos temas desse livro que é o velho sarnento que se revela um belo rapaz etc.] Ainda que a única exploração mais sistemática (e importante) de que me lembro está em CC p. 281ss, no contexto dos mitos do veneno. Lembrar aliás que a idéia do veneno como lugar de estreitamento máximo da diferença N/C, um ponto de isomorfismo ou compenetração das duas ordens, não vai sem evocar a questão da cultura venenosa dos Piaroa [cf. Overing]. But it is in La potière jalouse that Lévi-Strauss deals more directly with it. It appears there in connection with the notion of ‘le monde à l’envers’, the world as seen by the denizens of other cosmic levels (1985: 134–42, 149–52): for the red-haired anusless chthonian dwarves [see also MC p.171, 290 on the Tacana anusless little people] who feed on the smell of foods, wasps are enemy Indians, hares are jaguars; their day or summer is our night or winter and vice-versa. (Lévi-Strauss takes the chthonian dwarves, present in many Ameridian mythologies, to be a spatial translation of the arboreal fauna; este tema foi explorado inicialmente no curso do CF de 1964-65, ver PD pp. 109-11. Resumir aqui o complexo argumento do cap. IX da PJ, sobre os três andares do cosmos como consequência de um primeiro desdobramento do cosmos em dois). In Arapaho mythology, the dwarves speak the same language as humans, but with the meaning of words systematically inverted, a theme that reappears in the Chinook idea (op.cit.: 152) that the language of the dead is to that of the living as figurative speech is to literal speech (compare this to the ‘twisted language’ used by Yaminahua shamans when dealing with the spirit world — Townsley 1993). More generally, Lévi-Strauss observes the connection between perspectivistic themes and the many-layered cosmos so common in native America (na LSA: Kulina, Tukano, Ese Eja, Yanomami, Campa, Araweté, Wayãpi, Tapirapé, Panoans [check] e buscar outros) and identifies the ‘reciprocity of perspectives’ (op.cit.: 152) as a characteristic of the region’s mythologies: ‘la réciprocité de perspectives où j’ai vu le caractère propre de la pensée mythique...’

  • But see also Pensée sauvage p. 294, a general remark: ‘cette réciprocité de perspectives où l’homme et le monde se font miroir l’un à l’autre, et qui nous a paru pouvoir seule rendre compte des propriétés et des capacités de la pensée sauvage’. O que o autor tem em mente aqui é a reciprocidade entre as perspectivas da semantização da fisica e da fisicalização da semântica (ver abaixo) Mas sempre seria possível ver a frase acima como indicando que o perspectivismo cosmológico ameríndio é uma aplicação particular do princípio geral @ The theme of perspectivism is absent from Histoire de Lynx. But we can find there many references (Lévi-Strauss 1991: 97–100, 113–16; 127; 131; 216) to skin-changing or clothes-changing as interspecific metamorphosis, and to human–animal marriages as deriving from the ‘two-sided’ nature of mythic animals (part human, part beast). I am far from having completed my survey of Amerindian materials concerning perspectivism; among other interesting Amazonian references not used in the present lectures, see: Journet 1995: 193–94 (Curripaco); Gallois 1984/85: 188 (Wayãpi); Monod 1987: 128 (Piaroa) @Whitten in Rethinking History & Myth@
  • Notar a natureza essencialmente extensivista do conceito de perspectivismo em CLS.

“Rien d’étonnant si, dans un tel univers, les problèmes de cohabitation prennent des dimensions cosmiques…” (PJ p.155) — mas é vice-versa! São os problemas cósmicos que têm dimensões doméstico-coabitativas, uma vez que todos os “inquilinos” cósmicos são sujeitos etc. Curiosa inversão, a mesma que se repete na p. da PJ a propósito da cosmogonia dos Luiseño, sobre a “interpretação filosófica do canibalismo”, quando se trata de uma interpretação canibal da filosofia (i.e. das relações inter-espécies, logo da socio-ontologia)


Nota: Comentar a coletânea de mitos hohodene da col. Narradores, que abunda em exemplos e anedotas perspectivistas.


Ressalvas, avanços, precisões[]

Comentar aqui as questões e desenvolvimentos paralelos e posteriores a meus textos sobre o perspectivismo, i.e. as respostas críticas mais diretas.

  1. The most insightful exploration of a perspectivist cosmology is to be found in T. S. Lima’s thesis on the Juruna of Eastern Amazonia (Lima 1995; see also 1996). The richness and complexity of Lima’s analyses makes any summary mention to her data inappropriate. I can only refer the reader to her work; it was one of my major inspirations, even if my conclusions about perspectivism do not always coincide with hers. Desenvolver – com Tânia.[The notions of ‘perspective’ and ‘point of view’ play a central role in some of my previous work, but there the main focus was on intra-human dynamics (Viveiros de Castro 1992a [1986]: 64-66, 68, 343 n.16, 344 n.22, 248-51, 256-59; see also Viveiros de Castro 1996). The theses of Vilaça (1992) and especially of Lima (1995) showed me that it was possible to generalise such notions both in terms of extension and comprehension, and made me look deeper into the ethnographic record. @ Perspectivismo jívaro + TG apud ACT Man 1993: 673: as sociedades que “incorporate ... the perspective of the Other in the definition of their identities” (id. ibid.). Este era o horizonte inicial de meu conceito de perspectivismo.@]
  2. Comentar e resumir aqui a tese de E. Kohn, sobretudo (1) seu conceito de estética perspectivista, ligado à ‘estética do imediato’ que ele vê nos Runa, e seu contraste entre essa estética e o ‘modelo’ perspectivista, que seria ‘cosmológico’ (cap. 3 da tese; mas ver páginas finais da tese); (2) Seu cap. 4, onde é largamente ilustrada a ‘ecologia metafórica’ das equivalências perspectivas entre os diversos animais e seus ambientes, o estilo linguístico do uso do pronome ‘dele’ para designar relações (do tipo: ‘a vespa dele’ etc.); (3) Seu capitulo 6, p. ex. p. 220, que traz uma longa ilustração do perspectivismo sistemático dos Runa (na verdade, toda a tese).
  3. O artigo Willerslev 2004, sobre o caráter ‘abstrato’ do ‘modelo’ perspectivista e as críticas (de fatura ingoldiana) ao artigo de EVC; a proposta de associar perspectivismo e ‘mimesis’ taussiguiana para dar conta da caça yukaghir. A idéias de ‘not-animal, not not-animal’, i.e. do terceiro incluído ou do transicional winnicottiano.
  4. Some general observations are necessary. In the first place, perspectivism does not usually involve all animal species (besides covering other beings), or does not involve them to the same extent. @Isto é, nem todos os animais são pessoas, ou derivam da humanidade primordial, e muitas coisas no cosmos não são nem nunca foram pessoas. Evocar a frequente exceção dos peixes, normalmente associados a vegetais ou artefatos transformados, ou a plantas cultivadas de outras espécies (Kracke, Evc, Alexiades 1999: 179 n.7, Belaunde infra)@ @ Exemplos, entre muitos de animais ou plantas que são só isso: Crocker 1985, Lagrou 1998 p.41, Vilaça 1992 etc. etc. Assim também sao @ Lembrar também do contraste do Rondó do Caititu no CC entre caititus e queixadas sob este aspecto, que se repete perfeitamente aliás entre os Piro in Gow 2001; ou entre roedores grandes e pequenos entre os Avila Runa, com ou sem ‘Donos’ (Kohn p. 216). O pt. aqui é que o animal que não é pessoa ‘está lá’ para contrastar com o animal que é pessoa: ver CC para os pecaris: oposição sincrônica vs. diacrônica, etc. @ The emphasis seems to be [@isso é fraco@] on those species which perform a key symbolic and practical role such as the great predators, the rivals and enemies of human beings, and the princi-pal species of prey for humans: one of the central dimen-sions, possibly even the fundamental dimension, of perspectival inversions refers to the relative and relational statuses of predator and prey (Vilaça 1992: 49-51; Århem 1993: 11-12; Renard-Casevitz 1991:10-11, 29-31; see also Howell 1996: 133). @Sobre a comestibilidade e a humanidade dos mesmos animais: Lagrou 98 p. 43; sobre os bichos hematófagos como humanos tb. Lagrou 1998: 62@
    • [Nao sei se cabe aqui uma observaçao:] Para os Paumari todo animal, planta ou objeto é potencialmente humano- pelo menos no sentido em que pertence sempre a um coletivo (ex:coletivo tartaruga = siri kapamoarihi, mandioca ou faca). Isso tem de ser relacionado (e contextualizado), creio, com a questao dos 'sub-grupos' ou madiha, pois neste caso trata-se de uma organizaçao social do cosmos ja que pamoarihi é "forma humana de..", mas também "povo do.."(OBJ).
  5. Personhood and what we might call ‘perspectivity’ — the capacity to occupy a point of view — is then a question of degree and/or context (Hugh-Jones 1996a; Gray 1996: 141–44; see also Howell 1996: 136), rather than an absolute, diacritical property of some species and not of others. Some non-human beings evince this attribute in a more consequential manner than others; as a matter of fact, many of them have powers of agency far superior to humans and in this sense are ‘more persons’ than the latter (Hallowell 1960: 69; Smith 1998: 419-20). On the other hand, the question of non-human personhood has an essential a posteriori dimension. The possibility that a thus far insignificant type of being turns out to be a prosopomorphic agent capable of affecting humans is always open: context and personal experience are decisive here. @ver minhas obs. sobre Hallowell, Ingold e Bird-David no texto-rascunho ao fim do cap. seguinte: colocá-las aqui desde logo?@
    • Surralès 2003 : 46 – vani (alma) não é um substantivo, mas mais como um adjetivo — cp. o ‘ter pajé’ dos Tupi —, e portanto não é um atributo taxinômico que distinga tipos de seres.
  6. In the second place, to affirm that non-human beings are persons capable of a point of view is not the same as affirming that they are always persons, that is, that humans’ interactions with them are always predicated on a shared personhood. I am not referring here to any ‘dual attitude’ to animals or nature in general, that is, to a distinction between practical cognition (which is true) and religious ideology (which is false). [Nota#7: For instance, Tanner 1979, Karim 1981. See Bloch (1989) for a generalization of this argument, which smacks of the old distinction between ‘technical’ and ‘expressive’ aspects of action. @Redfield [Primitive World]: technical vs. moral order; Leach on symbolic and technical; Habermas… etc.@ Uma boa critica etnográfica desse dualismo se pode achar em Scott 1989@@Ver Schrempp para a noção de ‘dual formulation’, que me parece melhor, e pode se aplicar ao meu argumento@ HORTON ON ALL THIS@ Distinguir Tanner de Brightman aqui: o primeiro trabalha com o contraste entre técnico e religioso, o segundo com um contraste entre adversarial and benefactive, que não são assignáveis à polaridade entre real e imaginário.@ INGOLD 56. critica do dualismo prático/simbólico. [útil no contexto Tanner/Bloch, mas discordo da solução].] @HORTON@ @ See Brightman 1993: 95; Kohn 2002: 222, sobre personitude dos animais e contexto: ora sujeitos, ora objetos etc.@ If there is any duality — and there is indeed —, it belongs primarily to persons themselves (human and non-human), not to the attitudes towards them, for these are but a consequence of the two-sided nature of persons (this is not simply a Durkheimian position: see Lambek 1998). It has nothing to do with reality vs. illusion, economy vs. ideology, or practice vs. theory: it derives from a distinction between visible and invisible, objective and subjective, affects and percepts. The personhood of animals (and of humans) is in effect a question of context; but contexts cannot be imported ready-made from our own intellectual context — they must be defined in Amerindian terms [este ponto foi forcefully feito por Englund & Leach, in CA 41)
  7. E com efeito, não é só a personitude que é contextual, mas a espiritude também, como se pode ver nos usos contextualmente especificados de termos como iseke (Basso) etc. @
  8. Humanidade, personitude, antropomorfia, etc. Ver Waurá, Barcelos Neto: “No tempo das trevas, muitos dos animais que conhecemos hoje existiam unicamente em sua forma — yãu (“gente’’) — yãu é uma categoria que, antes de tudo, define antropomorfia (figura 1). Embora a noção xinguana de identidade humana esteja fortemente centrada no corpo (Viveiros de Castro, 1977, 1979, 2002c), antropomorfia, isoladamente, não define o que seja humano (Ireland, 1988b, 2001). [EVC: mas é claro, corpo não é figura (shape), é afeto; e moralidade é afeto.] Portanto, a condição antropomorfa dos yerupoho não implica em uma humanização direta destes. Entre os Wauja, o “humano” não é uma categoria singularizada em um vocábulo. A idéia do “humano” é constituída, sobretudo, por um feixe de relações morais em concomitância com processos de fabricação do corpo/pessoa (cf. também entre os Yawalapíti, Viveiros de Castro, 1977, 1979, 2002c). Essa moralidade é marcada por sentimentos de vergonha-respeito-medo, expressos segundo gradientes hierárquicos • humanos têm•59 vergonha-respeito-medo dos yerupoho/apapaatai, não o inverso; já os animais têm vergonha-respeito-medo dos humanos. Porém, o que constitui o elo entre os yerupoho e os humanos são os animais 36 . E esse elo é moral, pois quando os humanos utilizam mal os recursos (e.g. pesca, caça e vegetais), seus “donos” (os Animais e Plantas) voltam-se contra os humanos, daí o respeito-medo que estes têm por aqueles.
  9. Finally, it is not always clear whether spirits or subjectivities are being attributed to each individual animal, and there are exam-ples of cosmologies which deny consciousness to post-mythical animals (Overing 1985: 249ff; 1986: 245-46) or some other spiritual distinctiveness (Viveiros de Castro 1992a: 73-74; Baer 1994: 89) [In the Araweté case (Viveiros de Castro 1992a) at least, non-Araweté humans have the same spiritual disadvantages as animals (their souls do not go to the celestial paradise).] — but it is also far from clear whether this constitutes ‘animality’ as a unified domain opposed to ‘humanity’ (I believe it does not; see below). Be that as it may, the notion of animal spirit ‘masters’ (‘mothers of the game’, ‘master of the white-lipped peccaries’ etc.) is widely spread throughout the continent. These spirit masters, clearly endowed with intentionality analogous to that of humans, function as hypostases of the animal species with which they are associated, thereby creating an intersubjective field for human-animal relations even where empirical animals are not spiritualized. @ Nota: a distinção entre os animais e os espiritos mestres dos animais não é sempre óbvia etc. Ora o termo mesmo para espírito de animal e espirito mestre de animal é o mesmo Alexiades 1999: 194); ora o mestre é claramente separado do animal etc. Ou, p.ex. Barcelos Neto 2004: 60-61: “A relação conceitual entre Porcos e porcos não possui o esquematismo que se está a apresentar; de fato, ela é bastante ambígua e contextual. Apenas evidências muito concretas permitem, por exemplo, um Wauja distinguir se sua roça foi atacada por porcos (apapaatai-mona, categoria genérica para os animais de pêlo, com exceção do morcego) ou Porcos (yerupoho) vestidos de porcos hiper-vorazes (apapaatai). Como estes últimos são capazes de saltar bastante alto, muito acima das cercas defensivas que os Wauja constroem, o estrago que podem fazer nas roças é imensamente maior que os porcos eventualmente fazem. Os Porcos também são mais agressivos e não têm medo. Se um animal exibe uma agressividade incomum, os Wauja não duvidam em identificá-lo como um apapaatai, um ser muito mais próximo da polaridade monstro do que da polaridade animal.”@
  10. Ver a frase citada em Lagrou de um Caxi que diz que tudo tem seu ibu, dono, (assim como ‘cada coisa tem seu jaguar’, diriam os Aruaque de Roth, cf. Galeria de epígrafes) que eu interpretaria como tudo tem um aspecto subjetivo/humanóide (Lagrou 1998: 27-28)@ Ver a noção de yuxibu, tb. em Lagrou p. 57, como definindo os Mestres dos domînios cósmicos e das espécies animais. De como o mestre de uma espécie é uma versão gigante (nawa…) do animal, mas ao mesmo tempo é humanóide, etc. [@Cp. esse distinção de Lagrou entre yuxin e yuxibu (1998: ?) e a distinção que tenta Barcelos neto entre yerupoho e apapaatai
  11. No sistema Yudjá, os humanos situam como animais aqueles que os situam como afins potenciais (parceiros, guerreiros). Os animais com certeza são pessoas: a alma implica necessariamente isso. Mas se diz que só são gente (dubia) para si mesmos. Se tomam por gente, mas não são. Pode, contudo, acontecer de virarem gente para os Yudjá. Em detalhe: sua alma vira gente para a alma da gente. O acontecimento, claro, é onírico, ou então, xamânico. Esse fenômeno exprime menos uma neutralização da distinção gente-animal (pessoa humana/pessoa animal) do que o deslocamento dessa distinção para o domínio da pessoa humana: nossa alma toma por gente o que é animal, desta ou daquela espécie. Dizendo que os animais não são gente, T. S.Lima (1995) refere-se antes de tudo a uma vontade humana. Isso é uma questão de intencionalidade humana, que jamais deve (embora possa) confundir-se com a intencionalidade animal. O senso de realidade de uma pessoa humana deve ser um senso humano. Não seria possível tomar animal por gente sem virar animal. A criação dos animais no tempo mítico está associada à atribuição de vestimentas específicas e à perda da linguagem, assim como à perda de traços culturais distintivos, os quais foram transformados em atributos corporais: a anta pré-mítica tocava uma flauta cuja música está na origem do ‘assovio’ da anta. O criador Yudjá transformou em animais os seres antropomórficos do passado mítico porque suas extraordinárias capacidades de conhecimento lhe permitiam saber que tais seres eram animais. Sua condição não era evidente senão para o criador. “Eles são animais! Que se transformem, pois, em animais!” — disse o criador. É como se uma identidade de aparência ocultasse uma alteridade de direito. Foi o estatuto ou a posição dos seres antropomórficos (humanidade antiga) em face da humanidade (moderna) que Senã’ã alterou. Esta transformação foi efetuada por meio da atribuição de vestimentas específicas, as quais provocaram a perda da linguagem. Perda relativa, é verdade: os animais tornaram-se incapazes de falar com os humanos (podendo fazê-lo ainda na vida onírica). Levando-se em conta a perspectiva do criador, talvez não se possa inferir para o sistema Yudjá o que é permitido por outros sistemas, ou seja, que as vestimentas ocultam a verdadeira identidade dos animais. A noção de mascaramento talvez se aplicasse melhor ao tempo mítico, quando os humanos não percebiam que os seres antropomorfos eram animais. Essa variação merece ser articulada com o processo cosmogônico: a humanidade de que provêm os animais remete a uma humanidade distinta e antiga, e era dela que os animais não se distinguiam. A fórmula lévistraussiana a respeito do mito — a story from the time when humans and animals did not distinguish themselves from one another — mereceria dos Yudjá o seguinte reparo: os animais ainda procedem como antigamente! Caberia examinar se os sistemas que afirmam a simetria em espelho entre as posições humana e animal deixam-se infletir pelo modo mítico da diferenciação dos animais. As noções de dubia, gente, e Yudjá não são coextensivas. Os abi imama (povos da floresta) e os karai são dubia ao mesmo título que os Yudjá. Os abi imama são ex-Yudjá, os karai também, mas de modo equívoco. Os Yudjá descrevem esta diferença do seguinte modo: o criador soprou outras línguas para os primeiros, mas, quanto aos karai, soprou a língua Yudjá para virá-la pelo avesso, invertê-la. Os karai ainda são, por isso, Yudjá — diz-se. (Nota: Seria preciso explorar isso: o contexto dessa idéia é a escatologia (T. S. Lima 1995), mas ela também sugere uma analogia com a condição auto-ignorada dos pecaris cujo mito foi transformado, aliás, em mito dos karai.)TSL
  12. O problema do verdadeiro e do falso. Nota-se na literatura a utilização de juízos de verdade. Ainda não está óbvio se tais juízos são um componente do perspectivismo indígena ou de uma interpretação comandada pela distinção aparência-essência, temperada por vezes com uma pitada de relativismo. Weiss, por exemplo (mas Baer também), sugere que a forma dos espíritos na apreensão humana seria menos verdadeira que a forma humana auto-apreendida pelos espíritos. O diferencial entre essas apreensões se traduziria em termos do verdadeiro e do falso? A apreensão jaguar dos seres humanos como pecaris seria mais falsa ou mais verdadeira que a auto-apreensão humana? Somente a auto-apreensão seria verdadeira? Para todo sujeito, sua apreensão por uma outra categoria de sujeito seria falsa? Um outro ponto é se a verdade se diz de uma apreensão, à exclusão de outras, ou se diz da variação pássaro-gente, gente-pecari apontada por Weiss (cf. Deleuze: Le Pli). Uma interpretação perspectivista do perspectivismo não teria de dissociar a verdade e o julgamento? T. S. Lima (1995) sugere que, mutatis mutandis, tudo é verdade no sistema Yudjá. O que se põe é a questão da conveniência das verdades. Convém a pessoas humanas embriagar-se com o cauim dos pecaris? É indiferente para os humanos se o cauim é de gente, de porco, ou de pa’î? Pode-se desconfiar, porém, que a utilização de alucinógenos pelos povos estudados por Weiss e Baer talvez seja um aspecto pertinente para a constituição dos discursos indígenas sobre o valor de verdade das perspectivas. Até que ponto a abordagem de Lima não se vê constrangida pela ausência de xamãs entre os Yudjá? A questão do deboche dos animais mereceria ser examinada neste quadro.TSL
  13. O problema da transitividade do perspectivismo. "Nous, anacondas, ne sommes pas des anacondas, il faut nous appeler 'Etranger-long'. Pour nous, les anacondas sont les rivières. Les anacondas (c'est-à-dire les rivières) ont aussi des rivières mais nous ne les voyons pas". Esta passagem de um fascinante mito émerillon recentemente publicada (obrigado!) em nossas Páginas imortais aponta para um problema importante - o que é, se há, o outro do outro quando o outro é o mesmo (i.e. é o sujeito da perspectiva)? O que é a sucuri-cobra das sucuris-gente, e assim por diante? Há uma troca de impressões a respeito disso na "discussão" das Páginas imortais sobre o mito émerillon e suas implicações para uma teoria do perspectivismo.
    Uma passagem da etnografia tsimshiam de Marie-Françoise Guédon indica que o problema interessa talvez a várias culturas perspectivistas:
    • "If one is to follow the main myths, for the human being, the world looks like a human community surrounded by an spiritual realm, including an animal kingdom with all beings coming and going according to their kinds and interfering with each others’ lives; however, if one were to go and become an animal, a salmon for instance, one would discover that salmon people are to themselves as human beings are to us, and that to them, we human beings would look like naxnoq [supernatural beings], or perhaps bears feeding on their salmon. Such translation goes through several levels. For instance, the leaves of the cotton tree [choupo? álamo?] falling in the Skeena River are the salmon of the salmon people. I do not know what the salmon would be for the leaf, but I guess they appear what we look like to the salmon — unless they looked like bears" (Guédon 1984a: 141).
    • Parece descrição Makuna, Campa; não pareceria descrição Wari’. Parece congruência universal, fractal person (Wagner). Idem: “um dualismo em perpétuo desequilíbro, cujos estados sucessivos se embutem uns nos outros” (Lince, 215); idem: diferença interna e infinita (EVC); idem: “... o ponto de vista sendo a própria diferença”; “... a diferença interna e absoluta. Cada sujeito exprime, pois, um mundo absolutamente diferente... (Proust e..., p. 43).
    • Essa é uma questão que os etnógrafos vêm cercando já há algum tempo: sobre se há onça no mundo das onças e assim por diante. A questão se relaciona com o que TSL escreveu no páragrafo "Comparações" do página anterior (O solo etnográfico do perspectivismo (1)) e também, ou sobretudo, a uma outra questão, tratada no páragrafo seguinte ao presente, sobre a relação entre hierarquia e reciprocidade de perspectivas e o lugar do ponto de vista 'humano'. EVC tende a entender que a transitividade do perspectivismo é potencialmente infinita. Alguns trechos micro-etnográficos que ele mobiliza nesta direção:
    • Kandoshi: "{l}e jaguar persécuté par un chasseur peut [notar o modalizador] voir ce dernier comme un jaguar’. (Surrales 2003: 113)
    • Marubo: "Na época da cheia, o povo do rio faz festa; na seca, ficam em casa. Fazem suas roças no verão. Igarapé (te’ã) e igapó () cheios são sinais de que o povo de Ene Yochín está caçando ali. O povo do rio possui romëya(pajé), que toma oni (ayahuasca), waka shõpa (mamão d’água - ? ao que tudo indica, datura, ainda carecendo de uma confirmacao mais rigorosa) e romë (rapé), a fim de ver os yochín (espíritos/duplos). Eles vêem os yovë (espíritos/duplos benevolentes), que conversam com o romëya deles.(notas de campo de Pedro Cesarino, abril de 2004/1o semestre de 2005)
    • Marubo (continuação): O romëya do povo de Ene Yochín [Ene Yochin não é o nome de uma pessoa, muito embora seja referida como uma pessoa em certas narrativas, mas nome de uma coletividade, cujo chefe kakaya é metonimicamente chamado de Ene Yochin] fica com raiva porque nós daqui pegamos/roubamos a comida deles (isto é, pescamos o que para eles são bananas, cará, batata doce, macaxeira). Então, eles jogam veneno yamati pei para as pessoas daqui, dando doença, febre e magreza. Só o romëya tira ou suga estes venenos, principalmente das criancas. Os yora daqui deixam formiga tracoá (isisi) no meio do caminho para o rio: o povo do rio (e seus romëya) as vêem como cobra surucucu (shanõ), ficam com medo, e voltam para suas casas. Os romëya de lá e de cá conversam, dizendo que vão se respeitar, e não mandam doenças. Frequentam as festas uns dos outros. O romëya do vëi mai shavaya (este patamar terrestre onde moram os Marubo, isto é, a "morada da terra morta") vai ao eneshavapa (a "morada da água"), a casa de Ene Yochín, e ela, por sua vez, vem para cá. O povo do rio rouba o vaka (princípio vital/alma...) das pessoas – a pessoa morre: vai viver com eles no fundo do rio. Um marubo me disse que a onça (kamã) mora no rio, e é o cachorro (wapa) do povo de Ene Yochín: quando ele sai para pescar, está caçando aqui. A onça não é gente (yora): a mesma que vemos aqui é a que mora lá, como cachorro do povo do rio. Os Marubo costumavam plantar uma carreira de abacaxis ao longo do caminho que sobe do porto para o barranco onde estão as malocas: Ene Yochin, ao sair do rio// de sua casa para vir jogar veneno (yamati) nas crianças daqui, vê os abacaxis como se fossem lanças (paka), se assusta e volta para trás. (notas de campo de Pedro Cesarino, abril de 2004/1o semestre de 2005)
    • Paumari: as lagartas (adafi) usadas como iscas sao peixes (abaisana) para os peixes e sao consumidas por estes. As iscas/peixes sao trocadas com o pamoarihi dos peixes que entregam ao pescador o que, de seu ponto de vista, é um objeto e que, do ponto de vista do pescador, é peixe (ver detalhes sobre isso em O solo etnografico 1 - O registro etnografico, 4).
    • Ye'kuana: o mito de Medatia, (Civrieux in Guss, Language of the Birds p. 58): “The masters of those other people, the grandfathers of the animals, they know we don’t know”.
    • Mas é possível que os espíritos saibam que nós não sabemos, e que os animais não saibam que nós sabemos. Estou pensando aqui em (e a favor de) uma objeção que TSL certa vez levantou para EVC, em um antigo email: “continuo achando imprecisa a tua idéia de que há apenas uma visão de mundo. Tenho pensado que os mundos dos outros são um mundo humano menos um (-1). Não há porco, no mundo dos porcos; nem tucunaré, para os mortos; nem sangue, para a onça uari, nem lua para a lua matsiguenga." E em um trecho de um artigo mais recente da mesma autora:"Tomado em sentido estrito, o ser humano, vivo e desperto,apresenta uma irredutibilidade que eu não poderia deixar deressaltar: sua inimitável “sabedoria”. (...) A sabedoria humana consiste naquilo que nós mesmos chamamos de reflexividade: os vivos sabem que os mortos consideram o tucunaré como um cadáver, mas os mortos não sabem que se sabe isso a seu respeito, nem que os vivos consideram o tucunaré como tal. Essa sua relativa insensatez, ou seja, essa incapacidade de perspectivar a si mesmos caracteriza também a nossa existência onírica e os animais. O porco se sabe humano, sabe que um Juruna é um semelhante, mas não sabe que é um porco para os Juruna (1999: 49-50)." Mas como isso se generalizaria (ou não) à luz dos trechos ante-acima transcritos? Acho que há algo a desenvolver aqui.
  1. Sobre a multiplicidade perspectiva.
    • Um problema crucial, a saber: qual exatamente a natureza do 'privilégio' desfrutado pelo ponto de vista da humanidade (enquanto espécie) dentro da multiplicidade perspectiva? Há divergências aqui entre as diferentes versões indígenas do perspectivismo? Em outras palavras: o caráter "especial", i.e. "normal" ou "superior", da perspectiva dos humanos é uma propriedade formal (enunciativa) ou é uma propriedade substantiva? Mais geralmente, a questão que se coloca é a da vigência (ou não) de idéias relativas a uma assimetria entre seres de "diferentes estatutos ontológicos" (a expressão é de E. Kohn, sobre os Ávila Runa), a qual infletiria ou condicionaria uma reversibilidade indeterminada de perspectivas. Assim, por exemplo, podem-se supor diferenças nas capacidades respectivas de acesso de duas espécies quaisquer ao ponto de vista uma da outra, conforme as posições destas espécies em uma hierarquia ontológica, como propõe Kohn para os Runa (ele fala também em “hierarquia semiótica” onde espíritos-mestres-de-animais > humanos > animais); ou, fenômeno análogo mas não idêntico, a existência de níveis diferenciais de recursividade intencional (no sentido técnico do termo), como propõe TSL para os Juruna, para quem os animais não sabem algo que os humanos sabem a respeito do modo de aparição de "si mesmos" para "outrem". O problema, em suma e não por acaso, seria aquele, clássico, da relação entre "hierarquia" e "reciprocidade", entenda-se, entre hierarquia de perspectivas e reciprocidade de perspectivas. (EVC)
    • Recebo ‘multiplicidade perspectiva’ como um deslocamento fecundo de ‘multiplicidade de perspectivas’ e como um fraseado que avança sobre aquele de que existiria uma só e mesma perspectiva. Suponho a existência de divergências entre ‘versões’, capazes de oferecer pistas importantes (como o contraste entre a ignorância dos bichos presente em meu material e a sabedoria dos bichos sugerida por materiais que você vem inserindo neste wiki. O perspectivismo ‘simetria em espelho’ tipo Wari’, Wayãpi etc. pareceria negar qualquer privilégio à perspectiva humana (da espécie). E cada um poderia saber o que os outros sabem. Quando a relação deixa de ser especular, a perspectiva humana dá-se a ver ou fazer diferenças onde outros não vêem, donde seu caráter especial. Curiosamente, há na etnografia Wari’ (Vilaça, Conklin) um juízo humano que não há na etnografia Yudjá, o de misperception, atribuído aos mesmos animais que nos tomam por animais segundo a sua espécie. É parte da terapia xamânica Wari’ convencê-los de seu engano a nosso respeito. Imagino que tudo isso mereça ser lido ao largo das noções de essência ou verdade última. Minha opinião sobre o caráter ‘especial’ da perspectiva humana vem da percepção etnográfica, não do discurso indígena. Suponho fundamental o papel da assimetria (de) perspectiva(s). A sorte e o azar humanos estão ligados a isso. O problema é mesmo o das hierarquias recíprocas, mas, não é isso a perspectiva? (TSL)
    • Nota desajeitada: Em contraste com a reciprocidade perceptiva da relação de predação característica do sistema Wari’, o sistema Paumari (Bonilla 2005, Mana) é marcado pela equivocidade da relação comercial. Mesmo na ausência dos perceptos característicos do sistema Makuna (humanos = jaguar-de-peixes; frutas = peixe-de-peixes), ele parece exprimir uma estrutura ternária: patrões regionais > Paumari > presas; entretanto, essa estrutura parece uma resultante da repetição de uma relação dual (com que se contenta o sistema Wari’) em que a posição-paumari se oferece como co-implicação das perspectivas. Ela deixa transparecer um conteúdo hierárquico, mas a doença e a morte de crianças são acontecimentos provocados pela transformação de patrões (os humanos, na perspectiva animal) em empregados de suas presas. (TSL)
  2. Ampliações-aplicações do conceito
É possível ampliar a noção de perspectivismo ameríndio, para além do seu protótipo –a relação entre espécies, humanidades, etc.- incluindo outros campos de aplicação, por exemplo:
  • a) O tempo. Vejam-se os mitos em que as diversas idades de um mesmo sujeito são “peles” diferentes que podem ser alternadas. Por exemplo, o mito yaminawa em que um velho agonizante é esfolado pelos urubus, tornando-se jovem, mas podendo virar de novo velho envergando a pele antiga que carrega com ele (uma das muitas versões do motivo da “vida breve”). Como em outras “mudanças de pele”, não se trata de uma simples mudança de aspecto, mas sobretudo de uma mudança de atributos: o velho, sob a nova pele, recupera a agressividade sexual e guerreira. Ou, em outros termos, o tempo biológico não é um contínuo para o sujeito, que pode eventualmente se transferir de uma etapa a outra. É tentador relacionar essa alternância com as terminologias vocativas que permitem a um ego inverter a idade relativa denotada pelos termos de referência: vg., chamando a um SS de FF, ou eB, ou a um MB de ZS). O que costuma ser chamado de “tempo cíclico” (como no caso dos vocativos ou dos nomes pessoais pano-australianos) poderia em muitos casos ser reformulado como “tempo perspectivo” (quando essa “ciclicidade” é submetida a uma virada egocêntrica). Mais: essa possibilidade de inverter a perspectiva não é isenta de humor, como já Erikson aponta para esse e outros usos da terminologia de parentesco pano. O que remete à ambigüidade ou equivocidade própria das proposições perspectivistas (cf. Infra a discussão sobre o conceito de “humanidade”.
  • b) O espaço. Veja-se a noção “fractal” de espaço (descrita por Renard Casevitz 1991 e 1993 e Carneiro da Cunha 1998) pela qual um sujeito, situado em qualquer lugar, vê a mesma paisagem, se move na mesma toponímia, sem referentes espaciais objetivos. Os mitos yaminawa que relatam viagens, nessa linha, são sempre anti-odisséias: a alteridade é indiferente à distância, a diversidade se desvincula da extensão; por muito longe que se esteja na há nenhum monstro que não possa ser achado em casa, ou, em suma, toda e qualquer viagem é autour de sa chambre. Ver nesse sentido, também, o mito matsiguenga analisado por Renard-Casevitz (1991), em que os viajantes (longe de encontrar raças “plínicas” pelo caminho) são hospedados em toda a parte por humanos iguais a eles em tudo, salvo na sua dieta: por exemplo, o que eles comem como “peixe” é na verdade cobra, etc. --OCS 16:22, 10 Ago 2005 (UTC)











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