A Onça e a Diferença

Do corpo e do porco, da alma e da lama[]

Se diz aliás que a gente troca de sombra, por volta dos quarenta, quando alma e corpo revezam o jeito de se compenetrar.
(G. Rosa, “Grande Gedeão”, in Tutaméia)


Realizar os possíveis nativos como virtualidades é o mesmo que tratar as idéias nativas como conceitos. Dois exemplos.

1. Os porcos dos índios, ou a origem das maneiras à escrivaninha. É comum encontrar-se, na etnografia americana, a idéia de que, para os índios, os animais são humanos. Tal formulação condensa uma nebulosa de concepções sutilmente variadas, que discutiremos na parte III deste livro: não são todos os animais que são humanos, e não são só eles que o são; os animais não são humanos o tempo todo; eles foram humanos mas não o são mais; eles tornam-se humanos quando se acham fora de nossas vistas; eles apenas pensam que são humanos; eles vêem-se como humanos; eles têm uma alma humana sob um corpo animal; eles são gente assim como os humanos, mas não são humanos exatamente como a gente; e assim por diante. Além disso, ‘animal’ e ‘humano’ são traduções equívocas de certas palavras indígenas — e não esqueçamos que estamos diante de centenas de línguas distintas. Mas não importa, no momento. Suponhamos que enunciados como “os animais são humanos” ou “certos animais são gente” façam algum tipo de sentido, e um sentido que nada tenha de metafórico, para um dado grupo indígena. Tanto sentido, digamos (mas não exatamente o mesmo tipo de sentido), quanto o que a afirmação aparentemente inversa, e hoje tão pouco escandalosa, — “os humanos são animais” — faz para nós. Suponhamos, então, que o primeiro enunciado faça sentido para, por exemplo, os Ese Eja da Amazônia boliviana: “A afirmação, que eu frequentemente ouvi, de que ‘todos os animais são Ese Eja’ …” (Alexiades 1998: 179). Pois bem. Isabella Lepri, então estudante de antropologia, hoje antropóloga que trabalha, por coincidência, junto a esses mesmos Ese Eja, perguntou-me, em maio de 1998, se eu acreditava que os pecaris são humanos, como dizem os índios. Respondi que não — e o fiz porque suspeitei (sem razão) que ela acreditava que, se os índios diziam tal coisa, então devia ser verdade. Acrescentei, algo mentirosamente, que só ‘acreditava’ em átomos e genes, na teoria da relatividade e na evolução das espécies, na luta de classes e na lógica do capital, enfim, nesse tipo de coisa; mas que, como antropólogo, tomava perfeitamente a sério a idéia de que os pecaris são humanos. Ela me contestou: “Como você pode sustentar que leva o que os índios dizem a sério? Isso não é só um modo de ser polido com seus informantes? Como você pode levá-los a sério se só finge acreditar no que eles dizem?”

colocar adiante Latour on politeness (file Latour “91-Descola College”):

La question devient donc celle-ci : devenus contemporains d’eux-mêmes, les anciens Occidentaux, dégrisés, devenus par exemple Européens (et il s’agit là, comme chacun sait, d’un chantier immense, lui-même terriblement entremêlé, mais je dois simplifier), décident de se présenter autrement aux autres et de le faire d’une façon que je dirai polie, je ne trouve pas d’autre mot. En quoi réside cette politesse ? En ceci que le diplomate, en convoquant l’assemblée dont, rappelons-le, il ne contrôle plus la forme ni le contenu, ne peut s’adresser aux autres qu’en disant à peu près ceci : « Voici, pour notre part, ce à quoi nous avons décidé de tenir mordicus, ce sans quoi nous perdons notre identité ». La question devient donc pour l’anthropologie du monde contemporain de définir les exigences essentielles, ce fameux noyau dur que l’ancienne anthropologie, celle des Tropiques, croyaient pouvoir assez vite décrypter chez les autres —chez les anciens ‘autres’.

Essa intimação de hipocrisia obrigou-me, é claro, a refletir, e a dar uma resposta bem mais longa. Tão longa, de fato, que boa parte deste livro consiste nela. Estou convencido de que a questão de Isabella é absolutamente crucial, de que toda antropologia digna desse nome precisa respondê-la, e de que não é nada fácil respondê-la bem. Uma resposta possível, naturalmente, é aquela implícita na declaração de Lévi-Strauss citada mais atrás, onde ele opunha, à vacuidade referencial do mito, sua plenitude diagnóstica: dizer que os pecaris são humanos não nos ‘diz’ nada sobre os pecaris, mas muito sobre os humanos que o dizem. Essa é a solução clássica da antropologia, de Durkheim aos dias de hoje. Muita da antropologia chamada cognitiva, por exemplo, pode ser vista como uma elaboração exaustiva de tal atitude, que consiste em reduzir o discurso indígena a um conjunto de proposições, selecionar aquelas que são falsas (alternativamente, ‘vazias’) e produzir uma explicação de por que os humanos acreditam nelas, visto que são falsas ou vazias. Uma explicação, também por exemplo, pode ser aquela que conclui que tais proposições são objeto de um embutimento ou aspeamento por parte de seus enunciadores (Sperber 1974, 1982); elas remetem, portanto, não ao mundo, mas à relação dos enunciadores com seu próprio discurso. Tal relação é mais diretamente explicitada nas antropologias ditas ‘simbolistas’, de tipo semântico ou pragmático: enunciados como esse sobre os pecaris falam (ou fazem), ‘na verdade’, algo sobre a sociedade, não sobre o que falam. Tais enunciados não ensinariam nada sobre a ordem do mundo e a natureza do real, portanto, nem para nós nem para os índios. Levar a sério uma afirmação como “os pecaris são humanos”, nesse caso, consistiria em mostrar como certos humanos podem levá-la a sério, e mesmo acreditar nela, sem que se mostrem, com isso, irracionais — e, naturalmente, sem que os pecaris se mostrem, por isso, humanos. Salva-se o mundo: salvam-se os pecaris, salvam-se os nativos, e salva-se, sobretudo, o antropólogo. Essa solução não me satisfaz. Ao contrário, ela me incomoda profundamente. Ela parece implicar que, para levar os índios a sério, quando afirmam coisas como “os pecaris são humanos”, é preciso não acreditar no que eles dizem, visto que, se o fizéssemos, não estaríamos nos levando a sério. É preciso achar outra saída. Como não tenho espaço nem, sobretudo e evidentemente, competência para repassar a vasta literatura filosófica sobre a gramática da crença, a certeza, as atitudes proposicionais etc., apresento aqui apenas certas considerações suscitadas, intuitiva mais que reflexivamente, por minha experiência de etnógrafo. [REMETER AQUI A DISCUSSAO POSTERIOR NO TEXTO SOBRE BOYER, HOLBRAAD ETC. TALAL ASAD IN WRITING CULTURE CONTRA GELLNER SOBRE TUDO ISSO AQUI: CITAR.] Sou antropólogo, não suinólogo. Os pecaris (ou, como disse Evans-Pritchard a propósito dos Nuer, as vacas) não me interessam enormemente, os humanos sim. Mas os pecaris interessam enormemente àqueles humanos que dizem que eles são humanos. Portanto, a idéia de que os pecaris são humanos me interessa, a mim também, porque ‘diz’ algo sobre os humanos que dizem isso. Mas não porque ela diga algo que esses humanos não são capazes de dizer sozinhos, e sim porque, nela, esses humanos estão dizendo algo não só sobre os pecaris, mas também sobre o que é ser ‘humano’. (Por que os Nuer, ao contrário e por exemplo, não dizem que o gado é humano?). Um enunciado como “os pecaris são humanos”, se certamente revela — ao antropólogo — algo sobre o espírito humano, faz mais que isso — para os índios: ele afirma algo sobre o conceito de humano. Ele afirma, inter alia, que a noção de ‘espírito humano’, ou o conceito indígena de socialidade, incluem em sua extensão os pecaris — o que, e este é o ponto, modifica radicalmente a intensão destes conceitos relativamente aos nossos. A crença do nativo ou a descrença do antropólogo não têm nada a fazer aqui. Perguntar(-se) se o antropólogo deve acreditar no nativo é um category mistake equivalente a indagar se o número dois é alto ou verde. Eis os primeiros elementos de minha resposta a Isabella. Quando um antropólogo ouve de um interlocutor indígena (ou lê na etnografia de um colega) algo como “os pecaris são humanos”, a afirmação, sem dúvida, interessa-lhe porque ele ‘sabe’ que os pecaris não são humanos. Mas esse saber — um saber essencialmente arbitrário, para não dizermos burro — deve parar aí: seu único interesse consiste em ter despertado o interesse do antropólogo. Não se deve pedir mais a ele. Não se pode, acima de tudo, incorporá-lo implicitamente na economia do comentário antropológico, como se fosse necessário explicar (como se o essencial fosse explicar) por que os índios crêem que os pecaris são humanos quando de fato eles não o são. É inútil perguntar-se se os índios têm ou não razão a esse respeito: pois já não o ‘sabemos’? Mas o que é preciso saber é justamente o que não se sabe — a saber, o que os índios estão dizendo, quando dizem que os pecaris são humanos.

[Ver Asad op. cit. p.154-55, e tb. ver sua distinção crucial entre contestar (o que diz Gellner) e traduzir (o que diz o nativo), p. 156. E ver E.-P., “Algumas reminiscências…”, sobre isso de acreditar em bruxaria etc.:

“Aqui se coloca uma questão sobre a qual eu e meus colegas nem sempre estivemos de acordo. Ao escrever sobre as crenças de povos primitivos, será que importa saber se as consideramos válidas ou falaciosas? Vejamos o caso da bruxaria. Será que faz alguma diferença se acreditamos nela ou não? Ou basta apenas descrever como as pessoas acreditam nela, pensam e agem a partir dessa crença, e como essa crença afeta as relações sociais? Bem, acho que faz uma diferença, sim. Se não achamos sustentáveis as premissas psíquicas em que se baseiam as crenças sobre bruxaria, temos diante de nós a tarefa de dar conta de algo que é senso comum para o povo estudado mas é incompreensível para nós. Estamos em posição completamente diferente quando se trata da crença em Deus, ou pelo menos eu estou. Achamos que a bruxaria não existe, mas fomos ensinados a acreditar em Deus, de forma que, neste caso, não sentimos que temos de dar conta de uma ilusão. Temos apenas que descrever como aquele povo pensa a respeito de algo que nós também consideramos real, e de que forma essa crença afeta suas vidas. O ateu, contudo, está diante do mesmo problema, seja bruxaria ou Deus, e sente a necessidade de explicar uma ilusão mediante várias hipóteses psicológicas ou sociológicas. Reconheço que esta é uma questão filosófica muito difícil, pois é perfeitamente razoável perguntar por que — além da fé — deveria alguém aceitar Deus e não a bruxaria, uma vez que é possível sustentar, como é o caso de muitos antropólogos, que as provas da existência do primeiro não são mais convincentes que as da existência da segunda. A resposta, imagino, é que em nossa cultura (deixando de lado as crenças do passado, e o ceticismo moderno), a idéia de Deus faz sentido, a de bruxaria não. Levanto o problema mesmo sem poder lhe dar uma resposta satisfatória. Mas afinal, penso que faz alguma diferença achar que uma vaca existe ou que é apenas uma ilusão!”]

Uma idéia como essa está longe de ser evidente. O problema que ela coloca não reside na cópula da proposição, como se ‘pecari’ e ‘humano’ fossem noções comuns partilhadas pelo antropólogo e pelo nativo, e a única diferença residisse na equação bizarra entre os dois termos. É perfeitamente possível, diga-se de passagem, que o significado lexical ou a interpretação semântica de ‘pecari’ e ‘humano’ sejam mais ou menos os mesmos para os dois interlocutores; não se trata de um problema de tradução, ou de decidir se os índios e nós temos os mesmos natural kinds (provavelmente, provavelmente). O problema é que a idéia de que os pecaris são humanos é parte do sentido dos ‘conceitos’ de pecari e de humano naquela cultura, ou melhor, é essa idéia que é o verdadeiro conceito em potência — o conceito que determina o modo como as idéias de pecari e de humano se relacionam. Pois não há ‘primeiro’ os pecaris e os humanos, cada qual de seu lado, e ‘depois’ sobrevém a idéia de que os pecaris são humanos: ao contrário, os pecaris, os humanos e sua relação são dados simultaneamente. A estreiteza intelectual que ronda a antropologia, em casos como esse, consiste na redução das noções de pecari e de humano exclusivamente a variáveis independentes de uma proposição, quando elas devem ser vistas — se queremos levar os índios a sério — como variações inseparáveis de um conceito. Dizer que os pecaris são humanos, como já observei, não é dizer algo apenas sobre os pecaris, como se ‘humano’ fosse um predicado passivo e pacífico (por exemplo, o gênero em que se inclui a espécie pecari); tampouco é dar uma simples definição verbal de ‘pecari’, do tipo “‘surubim’ é (o nome de) um peixe”. Dizer que os pecaris são humanos é dizer algo sobre os pecaris e sobre os humanos, é dizer algo sobre o que pode ser o humano: se os pecaris têm a humanidade em potência, então os humanos teriam, talvez, uma potência-pecari? Com efeito, se os pecaris podem ser concebidos como humanos, então, por exemplo, deve ser possível conceber os humanos como pecaris: o que é ser humano, quando se é ‘pecari’, e o que é ser pecari, quando se é ‘humano’? Quais as consequências disto? Que conceito se pode extrair de um enunciado como “os pecaris são humanos”? Como transformar a concepção expressa por uma proposição desse tipo em um conceito? Assim, quando seus interlocutores indígenas lhe dizem (sob condições, como sempre, que cabe especificar) que os pecaris são humanos, o que o antropólogo deve se perguntar não é se ‘acredita ou não’ que os pecaris sejam humanos, mas o que uma idéia como essa lhe ensina sobre as noções indígenas de humanidade e de ‘pecaritude’. (O que uma idéia como essa, note-se, ensina-lhe sobre essas noções e sobre outras coisas: sobre as relações entre ele e seu interlocutor, os contextos pragmáticos em que tal enunciado é produzido ‘espontaneamente’, os gêneros de fala e o jogo de linguagem em que ele cabe etc. Essas outras coisas, porém — e gostaria de insistir sobre o ponto — estão muito longe de esgotar o sentido do enunciado. Reduzi-lo a um discurso que ‘fala’ apenas do enunciador e/ou das relações deste com seu próprio discurso é negar ao enunciador sua intencionalidade, e, de quebra, é obrigá-lo a trocar seu pecari por nosso humano. O que, seguramente, é um péssimo negócio para o caçador do pecari.)

  • [Discutir aqui Gow 2001: 78, 82-4 et passim, sobre pq. os Piro contam mitos, e para quem etc. Tudo isso é muito bom, mas inseparável do que eles contam, etc.]

E nesses termos, é óbvio que o etnógrafo tem de acreditar (no sentido de confiar) em seu interlocutor: pois se este não está a lhe dar uma opinião, mas a ensinar-lhe o que são os pecaris e os humanos, a explicar como o humano está implicado no pecari… A pergunta, mais uma vez, deve ser: para que serve essa idéia? Em que agenciamentos ela pode entrar? Quais suas consequências? Por exemplo: o que se come, quando se come um pecari, se os pecaris são humanos? E mais: carece ver se o conceito construível a partir de enunciados como esse exprime-se de modo realmente adequado pela forma “X é Y”. Pois não se trata tanto de um problema de predicação ou atribuição, mas de definir um conjunto virtual de eventos e de séries em que entram os porcos selvagens de nosso exemplo: os pecaris andam em bando… têm um chefe… são barulhentos e agressivos… sua aparição é súbita e imprevisível… são maus cunhados… comem açaí… vivem sob a terra… são encarnações dos mortos… e assim por diante. Não se trata com isso de identificar os atributos dos pecaris a atributos dos humanos, mas de algo muito diferente. Os pecaris são pecaris e humanos, são humanos naquilo que os humanos não são pecaris; os pecaris implicam os humanos, como idéia, em sua distância face aos humanos. Assim, quando se diz que os pecaris são humanos, não é para identificá-los aos humanos, mas para diferenciá-los de si mesmos — e a nós de nós mesmos. Disse acima que a idéia de que os pecaris são humanos está longe de ser evidente (ou “intuitiva”, sensu Boyer 1996). Por suposto: nenhuma idéia interessante é evidente, seja ela verdadeira ou falsa. Esta, em particular, não é não-evidente porque seja falsa ou inverificável — os índios dispõem de vários modos de verificá-la —, mas porque diz algo não-evidente (ou “contra-intuitivo”, ibid.) sobre o mundo. Os pecaris não são evidentemente humanos, eles o são não-evidentemente. Isso quereria dizer que tal idéia é ‘simbólica’, no sentido que Sperber deu a este adjetivo? Entendo que não. Sperber concebe os conceitos indígenas como proposições, e pior, como proposições de segunda classe, ‘representações semiproposicionais’ que prolongam o ‘saber enciclopédico’ sob um modo não-referencializável: confusão do autopositivo com o referencialmente vazio, do virtual com o fictício, da imanência com a clausura… Mas é possível ver o ‘simbolismo’ de outro modo que esse de Sperber, que o toma como algo lógica e cronologicamente posterior à enciclopédia ou à semântica, algo que marca os limites do conhecimento verdadeiro ou verificável, o ponto onde ele se transforma em ilusão. Os conceitos indígenas podem ser ditos simbólicos, mas em sentido muito diferente; não são subproposicionais, são superproposicionais, pois supõem as proposições enciclopédicas mas definem sua significação vital, seu sentido ou valor. As proposições enciclopédicas é que são semiconceituais ou subsimbólicas, não o contrário. O simbólico não é o semiverdadeiro, mas o pré-verdadeiro, isto é, o importante ou relevante: ele diz respeito, não ao que ‘é o caso’, mas ao que importa no que é o caso, ao que interessa para a vida no que é o caso. O que vale um pecari? Essa é a questão, literalmente, interessante. “Profundo: outra palavra para semiproposicional”, ironizou Sperber (1982: 173). Mas então caberia replicar: raso, chato, platitudinal — outras tantas palavras para proposicional. Profundos, com efeito, os conceitos indígenas certamente o são, como todo conceito, pois projetam um fundo, um plano de imanência povoado de intensidades, ou, se o leitor prefere a linguagem de Wittgenstein, um Weltbild quadrilhado por ‘pseudo-proposições’ de base que ignoram e precedem a partilha entre o verdadeiro e o falso, “tecendo uma rede que, lançada sobre o caos, pode lhe dar alguma consistência” (Prado Jr 1998: 317). Esse fundo é a “base sem fundamento” que não é nem racional/razoável nem irracional/insensata, mas que “simplesmente está lá — como nossa vida” (Sobre a certeza, § 59, in Prado Jr op.cit.: 319).


  • COMPLETAR:Os animais são gente versus os humanos são animais.

Levar a sério é saber o que os índios querem dizer, quando dizem que os pecaris são humanos, e não o que eles dizem sem querer. Isto é ser polido.

  • Problemas de antropologia simétrica. Sobre a frase de L’Homme Nu p. 571:
  • 1. E quando os mitos nos falam diretamente sobre a sociedade e a mente?
  • 2. E a ciência: ela também não nos ensina muito sobre a sociedade e a mente? E o que dizer das ciências que falam da sociedade e/ou da mente?
  • 3. Haveria um discurso que só nos instruiria sobre a natureza do mundo e a ordem do real, mas nada sobre a sociedade ou o espírito? (É o que pensam os cientistas de sua ciência).
  • Note-se que uma postura influente, quanto a isso, consiste em sustentar que os mitos não nos ensinam nada sobre a ordem do mundo e a natureza do real inclusive para os índios, isto é, que os mitos ‘são sobre’ a sociedade e a mente também para seus enunciadores. O que é puro ‘simbolismo’ à Durkheim.
  • O mito como índice (cognitivistas, CLS); como ícone (Leach, Durkheim); como símbolo (?). Mas as ênfases antropológicas modernas são sobre o canal, o emissor, o receptor, o código: tudo, menos a mensagem…
  • Tudo se passa como se os antropólogos achassem que tudo já foi dito sobre o conteúdo do mito, e que agora o que há a explorar é sua função pragmática, seu contexto de enunciação etc. O que é criticar o estruturalismo e ao mesmo tempo lhe conceder demais; como se ele tivesse resolvido os problemas que se pôs… É como se o que os índios dissessem não tivesse a menor importância; só conta: onde, como, para quem eles o dizem. Diante de “os pecaris são humanos”, o antropólogo não se pergunta como (em que sentido, em que 'mundo') os pecaris podem ser ditos humanos, mas por que, onde, quando e para quem os índios dizem que eles são humanos. Tendemos sempre a pensar que a antropologia anterior deu as respostas certas a problemas errados.Mas e se ela deu respostas erradas aos problemas certos?
  • Sobre o que dizem os mitos: melhor ainda quando não dizem nada; quando não se trata mais de mito, mas de ritual, se possível com o mínimo possível de discurso embutido. Pois quanto mais diferente da proposição referencial clássica (a proposição, que forma a substância do discurso antropológico), mais fácil fica dizer algo sobre o objeto.
  • URBAN p. 71-73. A ênfase sobre a atribuição a outrem da informação sobre o extrasensível marca uma disjunção ou não-equivalência entre o sensível e o inteligível: marca da origem discursiva do conhecimento extrasensorial. Assim, a cosmologia reconstruída pelo etnógrafo é um equívoco: não se trata de uma imagem sensível do mundo que está sendo veiculada; o cosmos não é um tópico de conversa no PI Ibirama. As respostas às perguntas do etnógrafo não são sobre o espaço, mas sobre o discurso. [só sobre o discurso?] O ponto de referência para qualquer pergunta sobre o espaço extraperceptivo é a narrativa mítica. O que se ouve não é: ‘como é no céu?’, mas ‘conte-me uma história’. 73: Assim, as questões do etnógrafo a seus dois informantes foram interpretadas não como questões sobre o mundo que eles podiam ver, mas sobre o discurso que eles haviam ouvido: ‘há um céu?’ transforma-se em ‘há narrativas tradicionais que descrevem um céu?’. Não se pode separar, como em nossa ontologia, questões de fisica/cosmologia de questões sobre a sociedade. Toda essa passagem é teoricamente crucial. De um lado, vemos aqui a ‘saída’ classicamente antropológica ao problema da ‘aparente irracionalidade’. Variante da resposta de tipo sperberiano à questão posta (e respondida nos mesmos termos) por Lévi-Strauss: os mitos não nos dizem nada sobre o mundo, mas muito sobre a sociedade e o espirito humano. Aqui, os mitos não nos dizem nada sobre o mundo, mas muito sobre o discurso, i.e. as relações sociais entre os sujeitos discursivos. Redução socio-epistemológica da ontologia alheia. Insistência de um corte êmico/ético (o espaço real descritível, o espaço celeste imperceptível e narrado), que se revela traiçoeira a partir do momento em que se considera que o ‘espaço’ descritível por Urban é igualmente narrado para o leitor, etc. A suposta inexistência de uma imagem sensível na cabeça dos índios que tenha a cosmologia por objeto se vê explicada por uma imagem discursiva que eles teriam na cabeça: perguntamos se há céu, eles nos respondem sobre suas relações sociais codificadas no discurso… O autor epistemologiza o conteúdo do discurso alheio, e ontologiza sua forma… O conteúdo do conteúdo desaparece no discurso. E se é impossível separar a física da sociologia no PI Ibirama, isso não significa que o discurso só ‘fale da’ sociologia. Urban, Sperber, CLS, todos caminham na senda durkheimiana.
  • 73-74. Mas o espaço inteligível também é um problema em nossa tradição. Parmenides, Newton, Einstein etc. Assim, a resposta de Wanpo sobre o céu não se referia ao espaço aparente (sensível), mas ao espaço verdadeiro, i.e. inteligível. “When the senses leave off, discourse takes over; it produces truth. An in this context, how eminently cultural truth seems — Eisntein rejecting Newton. Truth is a part of intelligibility; it depends upon discourse. (…) But discourse is also sensible. It circulates within perceptible or apparent space. (…) On the one side, [ethnography] seeks to discover truths that are built up about the world… On the other side, however, [it] also studies the sensible. It looks at discourse as perceptible, as circulating within a sensorily confirmable experience.”¶ Aqui as coisas se tornam complicadas novamente… O discurso indígena é suposto agora falar sobre uma verdade inteligível, culturalmente relativa como o é a de nossa ciência. Esse plano do inteligível é relativo; mas o plano do sensível não é. A verdade é relativa, mas as aparências não… O discurso como coisa objetiva circula no plano do sensível.¶ Imagine-se o enunciado sobre a humanidade dos pecaris exatamente como dizendo algo sobre a essência inteligível dos pecaris, não sobre sua — justamente — aparência. Mas isso significa que tal inteligibilidade deve ser reduzida aos contextos de circulação de tal enunciado?
  • Notar que não se trata de desqualificar as análises de tipo cognitivo-lévistraussianas, mas enveredar por outro caminho.
  • @ Tudo isso tem de ser reescrito à luz dos sperberismos e outros analiticismos recentes, sobre as noções de crença, crer vs. aceitar, crenças intuitivas e reflexivas, metarepresentações etc… E ver tb. Brightman p. 189 passim., sobre os Cree acreditarem ou não etc.
  • @ Essa solução, em geral, equivale a propor que um movimento que faço para pegar um copo diz muito sobre a anatomia e a neurofisiologia humana, mas nada sobre minhas intenções, ou que Sócrates estar sentado na prisão se explica porque ele tem joelhos capazes de se dobrar etc. [ver ref. a Platão em Leibniz Disc. Metaph. Sempre olhando-se o dedo que aponta para a lua… Esta é a atitude fundamental da neo-antropologia!!!
  • @ O princípio do animismo não é a identidade, nem a indiferenca, mas a síntese disjuntiva. Assim, quando se diz que os pecaris são humanos, não é para identificá-los aos humanos, mas para diferenciá-los de si mesmos. Além disso, os pecaris são humanos porque são afins dos humanos, e não vice-versa [são humanos porque são ‘sujeitos’, e não o contrário].

2. Os corpos dos índios, ou a profilaxia da diarréia infantil. Meu amigo Peter Gow narrou-me, cerca de um ano atrás, a seguinte cena, presenciada em uma de suas estadas entre os Piro da Amazônia peruana: Uma professora da missão [na aldeia de] Santa Clara estava tentando convencer uma mulher piro a preparar a comida de seu filho pequeno com água fervida. A mulher replicou: “Se bebemos água fervida, contraímos diarréia”. A professora, rindo com zombaria da resposta, explicou que a diarréia infantil comum é causada justamente pela ingestão de água não-fervida. Sem se abalar, a mulher piro respondeu: “Talvez para o povo de Lima isso seja verdade. Mas para nós, gente nativa daqui, a água fervida dá diarréia. Nossos corpos são diferentes dos corpos de vocês” (Gow, com.pess. 12/10/00). O que pode o antropólogo fazer com essa resposta da mulher índia? Várias coisas. Gow, por exemplo, teceu comentários argutos sobre a anedota, em um artigo em preparação: Este enunciado simples [“nossos corpos são diferentes”] captura com elegância o que Viveiros de Castro [1996] chamou de perspectivismo cosmológico, ou multinaturalismo: o que distingue os diferentes tipos de gente são seus corpos, não suas culturas. Deve-se notar, entretanto, que esse exemplo de cosmologia perspectivista não foi obtido no curso de uma discussão esotérica sobre o mundo oculto dos espíritos, mas em uma conversação em torno de preocupações eminentemente práticas: o que causa a diarréia infantil? Seria tentador ver as posições da professora e da mulher piro como representando duas cosmologias distintas, o multiculturalismo e o multinaturalismo, e imaginar a conversa como um choque de cosmologias ou culturas. Isto seria, penso, um engano. As duas cosmologias/culturas, no caso, estão em contato já há muito tempo, sua imbricação precede de muito os processos ontogenéticos através dos quais a professora e essa mulher piro vieram a formulá-las como auto-evidentes. Mas sobretudo, tal interpretação estaria traduzindo o diálogo nos termos gerais de uma de suas partes, a saber, o multiculturalismo. As coordenadas da posição da mulher piro estariam sendo sistematicamente violadas pela análise. Isso não quer dizer, é claro, que eu creia que as crianças devem beber água não-fervida. Mas isso quer dizer que a análise etnográfica não pode ir adiante se já se decidiu de antemão o sentido geral de um encontro como esse. Sugiro que estamos, aqui, diante de uma cosmologia única e coordenada, e que se manifesta na maneira pela qual as duas mulheres concordaram em discordar: a mulher piro atribuindo a coerência lógica da posição da professora a sua familiaridade limitada com a variabilidade dos tipos de corpos, e a professora atribuindo a coerência lógica da posição da mãe piro a sua ignorância, à incompetência técnica do conhecimento piro sobre o mundo, isto é, a diferenças culturais entendidas como uma hierarquia de valores. Meu argumento, portanto, é que tais conversações são os mecanismos pelos quais os povos nativos do Peru oriental vêm a experimentar a multiplicidade social como algo confirmatório de suas auto-evidencialidades em contraste (Gow, loc.cit.) Concordo com muito do argumento acima. A anedota reportada por Gow é de fato uma esplêndida ilustração, especialmente por derivar de um incidente banalmente cotidiano, da divergência irredutível entre o que chamei de ‘multiculturalismo’ e de ‘multinaturalismo’. Mas a análise sugerida por ele não me parece a única possível. Sobre a questão da tradução da conversa nos termos gerais de uma das partes — no caso, a professora: não seria igualmente possível, e sobretudo necessário, traduzi-la nos termos gerais da outra parte? Pois não há terceira posição, uma posição de sobrevôo que remetesse “dos à dos” as duas outras. É preciso tomar partido. Gow, entretanto, intima que não há, a rigor, duas partes, mas uma só. Mas o que seria essa “cosmologia única e coordenada”? Estaria ele sugerindo que as duas mulheres compartilham o mesmo conjunto de pressupostos sobre o que é a realidade? Não creio. Alguns pressupostos, pelo menos? Sem dúvida; mas seriam estes os interessantes? Será que se poderia dizer, por exemplo, que cada mulher está ‘culturalizando’ a outra nessa conversa, isto é, atribuindo a tolice da outra à ‘cultura’ desta, ao passo que ‘interpreta’ a sua própria posição como ‘natural’? Seria o caso de se dizer que o argumento sobre o ‘corpo’ avançado pela mulher piro já é uma espécie de concessão aos pressupostos da professora? Não vejo que as duas mulheres tenham concordado em discordar. A mulher piro ‘concordou em discordar’, mas a professora, de modo algum. A primeira não contestou o fato de que as pessoas da cidade de Lima (“talvez”) devam beber água fervida, ao passo que a professora recusou peremptoriamente a idéia de que as pessoas da aldeia de Santa Clara não o devam. O ‘relativismo’ da mulher piro — um relativismo ‘natural’, não ‘cultural’, note-se — pode ser interpretado segundo certas hipóteses a respeito da economia cognitiva das sociedades não-modernas, ou sem escrita, ou tradicionais etc. Nos termos da teoria de Robin Horton (1993: 379-ss), por exemplo. Horton identifica o que chamou de “paroquialismo de visão de mundo” (world-view parochialism) como algo característico dessas sociedades: contrariamente à exigência implícita de universalização contida nas cosmologias racionalizadas da modernidade ocidental, as cosmologias dos povos tradicionais parecem marcadas por um espírito de grande tolerância, mas que é na verdade uma indiferença à concorrência de visões de mundo discrepantes. O relativismo aparente dos Piro não manifestaria, assim, sua largueza de vistas, mas, muito ao contrário, sua miopia: eles pouco se importam como as coisas são alhures. Há vários motivos para se recusar uma leitura como essa de Horton; entre outros, o de que o dito relativismo primitivo não é apenas intercultural, mas intracultural e ‘autocultural’, e que ele não exprime nem uma tolerância, nem uma indiferença, mas sim uma exterioridade absoluta à idéia cripto-teológica de ‘cultura’ como conjunto de crenças (Viveiros de Castro 1993b). O motivo principal, entretanto, está perfeitamente prefigurado nos comentários de Gow, a saber, que essa idéia do “paroquialismo” traduz o debate de Santa Clara nos termos da posição da professora, com seu universalismo natural e seu diferencialismo (mais ou menos tolerante) cultural. Há várias visões de mundo, mas há um só mundo — um mundo onde todas as crianças devem beber água fervida (se, é claro, encontrarem-se em uma parte do mesmo onde a diarréia infantil seja uma ameaça). Em lugar dessa leitura, proponho uma outra. A anedota dos corpos diferentes convida a um esforço de determinação do mundo possível expresso no juízo da mulher piro. Um mundo possível no qual os corpos humanos sejam diferentes em Lima e em Santa Clara — no qual seja necessário que os corpos dos brancos e dos índios sejam diferentes. Ora, determinar esse mundo não é inventar um mundo imaginário, um mundo dotado, digamos, de outra física ou outra biologia, onde o universo não seria isotrópico e os corpos comportar-se-iam segundo leis diferentes em lugares distintos. Isso seria (má) ficção científica. O que se trata é de encontrar o problema real que torna possível o mundo implicado na réplica da mulher piro. O argumento de que “nossos corpos são diferentes” não exprime uma teoria biológica alternativa, e, naturalmente, equivocada, ou uma biologia objetiva imaginariamente não-standard. O que o argumento piro manifesta é uma idéia não-biológica de corpo, idéia que faz com que questões como a diarréia infantil não sejam tratadas enquanto objetos de uma teoria biológica. O argumento afirma que nossos ‘corpos’ respectivos são diferentes, entenda-se, que os conceitos piro e ocidental de corpo são divergentes, não que nossas ‘biologias’ são diversas. A anedota da água piro não reflete uma outra visão de um mesmo corpo, mas um outro conceito de corpo, cuja dissonância subjacente à sua homonímia face ao nosso é, justamente, o problema. Assim, por exemplo, o conceito piro de corpo pode não estar, tal o nosso, na alma (na ‘mente’), sob a forma de representação de um corpo que seria seu ‘outro’ real; ele pode estar, ao contrário, inscrito no próprio corpo como perspectiva (Viveiros de Castro 1996a). Não, então, o conceito como representação de um corpo extra-conceitual, mas o corpo como perspectiva interna do conceito: o corpo como implicado no conceito de perspectiva. E se, como dizia Spinoza, não sabemos o que pode um corpo, quanto menos saberíamos o que pode esse corpo. Para não falar de sua alma.

  • Terceiro exemplo: a lógica motile de Holbraad (tese e artigo), e a teoria da ‘formalização’, i.e. de redefinição intensional dos conceitos ocidentais. (O procedimento pelo qual Holbraad tenciona construir um esquema conceitual em continuidade com a afirmação nativa chama-se “formalização”: trata-se de que os conceitos formais (necessidade, trajetória) podem ser tanto “extraneous to and – nevertheless – extracted from local phenomena” (2002: 6).) Criticar via Holbraad: Boyer, TTC cap. 3, o problema do conceito vazio, do emissor de autoridade, a concepção indicial da verdade (e a teoria da confusão palavra/coisa), etc.
  • Nota: Sperber e a confusão do transcendental com o transcendente, por ignorar o sintético a priori. A confusão do senso comum ref. Prado jr, e a confusão simétrica e inversa de Sperber… Sobre as pseudoproposições de base (Wittgenstein) e o plano de imanência: o erro essencial de Sperber e Boyer é derivar as semiproposições das proposições, os conceitos vazios dos conceitos cheios, quando é o contrário que se passa.
  • REMETER ESSA DISCUSSAO COM O COGNITIVISMO PARA A CONCLUSAO. Sperber e ‘racionalidade’. A tripartição semântica [analitico a priori] / enciclopédia [sintético a posteriori] / simbolismo [uso transcendente das categorias]. O problema de Sperber é que ele pensa o simbolismo como derivado da enciclopédia, o que coloca o problema das pseudo-proposições de Wittgenstein. O que Sperber chama de simbolismo é o que chamo de pensamento conceitual. Para ele, é um modo bastardo de pensamento, porque no fundo seu modelo é a ciência. Mas a ciéncia também é um tipo de simbolismo, e muito particular. Além disso, parece-me que o modelo de Sperber não permite distinguir entre proposições simbólicas com sentido e sem sentido, dentro de um dado jogo de linguagem.
  • O maior ponto fraco do sperberismo, do ponto de vista do projeto do E.V.C., está em sua base pressuposta: por exemplo, a teoria da relevância quer pensar a comunicação griceanamente, como a expressão e o reconhecimento de intenções do falante (o speakers meaning griceano). Trata-se de um modelo que subjetiviza e individualiza o expresso: a semântica de uma expressão qualquer em uma conversação é fixada por uma dada organização das intenções e crenças do sujeito falante. Se isso parece funcionar no caso de uma (digamos) interpretação doméstica, não funcionaria em absoluto como base epistemológica de uma antropologia. E, de fato, só parece funcionar no caso doméstico: é possível mostrar que mesmo que as intenções e crenças relevantes daquele que fala estivessem suficientemente compreendidas e explicitadas, falta muita coisa até a determinação do conteúdo das palavras da conversação – daí o papel domesticado do contexto, ajudante do sujeito, parte da idealização da comunicação na consideração filosófica da linguagem. Falta muita coisa: poderíamos dizer que falta deixar de pressupor o mundo como dado, e perceber que, sem os mesmos conceitos -no sentido do EVC- não há compreensão (isto é, convivência em uma linguagem ou simbolismo). Com efeito, se a apropriação da filosofia de Deleuze do E.V.C. apresenta congruências com determinadas posições de Wittgenstein, temos ali uma boa base anti-sperberiana. Vemos nesse autor o esforço em marcar a indeterminação idealista (linguagem privada - platonismo) da compreensão da linguagem, e a dependência de uma convivência em um mesmo espaço explicitado por proposições obviamente verdadeiras - aquilo que o EVC e o BPJ chamam de pseudo-proposições (de um modo que torna o predicado verdadeiro dispensável - Da Certeza: 205). A idéia do Latour de que “a crença não é um estado mental, mas um efeito da relação entre os povos” ressoa no Notas acerca do ramo de ouro: “um símbolo religioso não se baseia em crença alguma. E só onde há uma crença há erro” ; e mais ainda no Da Certeza, nas distinções gramaticais entre saber, crença, e etc.: “seria correto dizer: ‘eu creio...’ tem verdade subjetiva, mas ‘eu sei...’ não a tem”. “Ou ainda ‘eu creio...’ é uma expressão, mas não ‘eu sei...’”. (essa idéia de que o “eu sei” não é uma expressão pode ainda ser usada contra as teorias expressivistas (ou emotivistas) da cultura, como vemos no debate Habermas / Rawls, assim como na base dos multiculturalismos e etc ). Contra o idealismo pragmático: Aquilo pelo que o mundo se determina não se manifesta ao homem como algo em que se acredita. Vivências não são figurações, e acontecimentos não são verdadeiros ou falsos. MAM.
  • Sobre o modelo proposicional. Lembrar das diversas tentativas de contotrnar a inadequação do esquema proposicional para o ‘simbolismo’: Sperber e o semi-prop; Whitehouse e o imagístico; Urban e o sensível; Barth e o símbolo — tudo isso vem de Turner e o caráter não-verbal dos símbolos rituais… E todos pensam o não-proposicional como não-conceitual, como essencialmente primitivo. E essa dicotomia dá muito mais à proposição do que ela imagina — exatamente como a ‘prática’ termina por reificar a ‘teoria’. É preciso produzir os conceitos que correspondem ao modo ‘imagístico’ de Whitehouse.
  • Horton: world-view parochialism, o qual paroquialismo produz uma tolerância [mas não, como ele pensa, uma indiferença] a outras visões de mundo; o que diz Horton chega quase perto de meu multinaturalismo, ver seu livro, p. 379. Horton, além disso, não vê que a ‘tolerância’ se aplica internamente tb., não é um problema de indiferença ao outro (diálogo de Caillet; o conceito akha de cultura, Tooker in Man 27). De resto, ver o que dizem Vernant (Entre Mythe et politique p.246-47) e Paul Veyne sobre a crença grega em seus mitos, etc. etc. Politeísmo etc. @
  • Os conceitos não são referenciais: são autopositivos ou autopoiéticos, só representam a si mesmos — são tautegóricos (Schelling), não alegóricos. Não são, assim, nem internos nem externos: são a manifestação intelectual daquela dimensão pré-objetiva e pré-subjetiva que Winnicott chamou memoravelmente de espaço transicional, e que recebeu tantos outros nomes (com regimes conceituais próprios): o sentido noemático (Husserl), o mundo intermediário (Cassirer), o ‘terceiro gênero do ser, entre o puro sujeito e o puro objeto’ (i.e. o corpo próprio, Merleau-Ponty, PhP: 402; Szymkowiak p. 69), a thirdness (Peirce), o limite (Simondon), a prática (Bourdieu), a mediação (Latour), o exprimido (Deleuze)… Os conceitos são o objeto transicional do pensamento. O conceito e o ‘terceiro mundo’ (Frege, Popper, Winnicott, Sloterdijk…). Ver Clavier, Concept de Monde.
  • Em seguida, selvagem. o que se discute é “um certo” pensamento ‘selvagem’, não “o” pensamento selvagem. [Horton sobre CLS, p. 384]
  • Contraste com PS no plano da generalidade e da especificidade. O que é, e quem é, selvagem. A analogia selvagem.
  • Qual o conceito de conceito. Hegel, Deleuze. A noção de conceito é pesada, é preciso explicá-la bem. Contraste entre o conceito aqui e o conceito dos cognitivistas. CLS, o conceito do engenheiro e o signo do bricoleur etc. Tratá-las como conceitos significa fazer conceitos a partir delas: extrair conceitos de suas concepções (assim como o artista extrai perceptos de suas percepções?). (Jullien).
  • Todos querem se livrar do conceito (porque Hegel etc. o punham como telos da razão?): desde Cassirer e seu ‘pensamento mítico’ estranho ao conceito (ver Detienne L’Invention de la Mithologie pág. 193) até Turner e seu símbolo, passando pelo semiproposicional de Sperber, o não-proposicional de Bloch, e o sensível de Urban, o símbolo de Barth, o imagístico de Whitehouse etc. etc. (ver 825d supra). E agora também o pensamento chinês de Jullien (ver o comentário de J.M. Schaeffer in Dépayser la pensée, sobre o infra-filosófico, o nível “antropológico” que seria “inacessível à determinação conceitualizante”). E lembrar ainda de Simondon… No fundo, o projeto fenomenológico… Ora, em vez de se livrar do conceito, penso que é preciso encontrar o infra-filosófico dentro do conceito, e assim, aconceitualidade virtual dentro do infra-filosófico. Em outras palavras, precisamos de um outro conceito de conceito… o que se precisa é de um conceito antropológico de conceito. (Notar, um conceito antropológico do conceito não é um conceito psicológico. Não envolve nem o conceito de crença, nem o de categoria inata).
  • Essa antipatia pelo conceito é, naturalmente, a mesma coisa que a antipatia por noções como ‘teoria’, ‘cosmologia’, ‘sistema de pensamento’ etc. (Ver o tique já clichê-izado em tantos projetos de pesquisa...). O argumento provavelmente remonta, em filiação direta, a Bourdieu e sua crítica do objetivismo teoricista; indiretamente (pois Bourdieu vem dali), remonta à fenomenologia. Ele se desenvolve em: Goody e a razão antigráfica; Boyer e sua crítica a Horton; Bloch e as coisas que vão sem dizer; Houseman, Severi e seus ‘contextos de interação’; Detienne e a invenção da mitologia; Schaeffer e sua análise de Jullien… E ver os diversos nomes eufêmicos dados à ‘coisa’ que vem preencher o lugar de cosmologia: esquema diretor, esquema da praxis, pressupostos etc. etc.
  • E o problema, em suma, é rejeitar essa falsa alternativa, entre uma ‘teoria’ completa e contingente de tipo cosmologista e um pensamento necessária e inteiramente causado pelo make-up cognitivo e pela forma de transmissão ou o ‘contexto’ (oral, tradicional etc.). Pois, mais uma vez, esse tipo de argumento concede demais à teoria, de um lado, e de menos à prática,de outro. Dualismo e etnocentrismo dos boyeristas & cia: o conceito ‘cheio’ difere toto cœlo do ‘empty concept’, a teoria não é um tipo de prática, e assim por diante.
  • Do discurso de EVC à ASA em Manchester/2003:
  • But as a first step we have to resolve our highly ambivalent attitude concerning the propositional model of knowledge. Contemporary anthropology, both in its phenomenological-constructionist and in its cognitive-instructionist guises, has proven notable for insisting on the severe limitations of this model when it comes to dealing with intellectual economies of ‘non-western’ type (I mean non-modern, non-written, non-theoretical, non-doctrinal or non-whatever intellectual economies). Indeed, anthropological discourse has embroiled itself in the paradoxical pastime of heaping propositions on top of propositions arguing for the fundamentally non-propositional nature of other peoples’ discourses — chattering away endlessly about what goes without saying, so to speak. We count ourselves lucky when our natives display a blissful disdain for the practice of self-interpretation, and even less interest in cosmology and system. We’re probably right, since the lack of native interpretation has the great advantage of allowing the proliferation of anthropological interpretations of this lack. Simultaneously, the native’s disinterest in cosmological order fosters the production of neat anthropological cosmologies in which societies are ordered according to their greater or lesser inclination towards systematicity (or doctrinality, or whatever). In sum, the more practical the native, the more theoretical the anthropologist. We should also note that the non-propositional mode is held to be characterized by a strong dependency on its ‘context’ of transmission and circulation. This makes it the exact opposite (supposedly, it goes without saying) of scientific discourse — a discourse whose aim is precisely universalization. To repeat a refrain: all of us are context-bound, but some are more context-bound than others.
  • My issue here isn’t with the thesis of the quintessential non-propositionality of untamed thought, but with the underlying idea that the proposition is in any sense a good model of conceptuality in general. The proposition continues to serve as the prototype of rational statements and the atom of theoretical discourse. The non-propositional is seen as essentially primitive, as non-conceptual or even anti-conceptual. Naturally, such a state of affairs can be used both ‘for’ and ‘against’ this non-conceptual Other: the absence of rational-propositional concepts may be held to correspond to a super-presence of sensibility, emotion, sociability, relational-cum-meaningful practice and what not. For or against, though, all this concedes way too much to the proposition, and reflects a totally archaic concept of the concept, one which continues to define it as the subsumption of the particular by the universal, that is, as essentially a movement towards classification and abstraction. Now, rather than simply divorcing, for better or worse, the concept from 'cognition in practice' (to pay homage to Jean Lave’s famous book), I believe we need to discover the infra-philosophical within the concept, and likewise (perhaps more importantly) the virtual conceptuality within the infra-philosophical. What kind of life, for instance, is projected by ideas such as the Cartesian Cogito or the Kantian synthetic a priori? (Recall Wittgenstein’s indignation against the petty spiritual life presumed by Frazer’s interpretations of primitive rites.) And in like manner, what sort of virtual conceptuality pulsates within Amazonian shamanic narratives, Melanesian initiation rituals, African hunting traps, or Euro-American kinship usages? (Think of the stunted conceptual imagination presumed by many an anthropological dilucidation of wild thought.)
  • We need less by way of context and more by way of concept. In other words, we need an anthropological concept of the concept, which assumes the fundamental extra-propositionality of all thought in its integral positivity, and develops in a completely different direction to our traditional notions of ‘innate category,’ ‘collective representation’ and ‘belief.’ In brief, we need an anthropological theory of conceptual imagination: the faculty of creating those intellectual objects and relations which furnish the indefinitely many possible worlds of which humans are capable. This theory must be anthropological, that is, based on the relational matrix of human thinking-and-acting. In his magnificent Art & Agency, Alfred Gell remarks that anthropological theories must conjoin a theory of social efficacy with cognitive considerations, ‘because cognition and sociality are one.’ Indeed, but the equivalence cuts both ways: a theory of human cognition is relational, i.e. anthropological, or it is nothing.
  • Acrescentar apenas
  • (1) um ou dois parágrafos sobre a tradução dos conceitos: dar o exemplo do corpo e da alma; Sobre a tradução: se não há base comum, mas apenas diferença comum, entre p.ex. nossos conceitos de alma e os deles, o que justifica a tradução de X por ‘alma’ e não outra coisa? Nada, em princípio. Tudo é uma questão do número de conexões, pois de fato tudo pode ser mapeado em tudo, o que conta é o número e a natureza das transformações que é preciso fazer. Os recobrimentos parciais dos conceitos não apontam para um significado universal.