A Onça e a Diferença

Da concepção ao conceito[]

Isso tudo não quereria apenas dizer que o ponto de vista perseguido no livro é ‘o ponto de vista do nativo’, como os antropólogos professam de longa data? De fato, não há nada de particularmente original no ponto de vista aqui adotado; a originalidade que conta é a do ponto de vista indígena, não a de meu comentário. Mas, sobre a questão do objetivo ser o ponto de vista do nativo — a resposta é sim, e não. Sim, e mesmo mais, porque o problema é o de saber o que é um ‘ponto de vista’ para o nativo, entenda-se, qual é o conceito de ponto de vista presente nas culturas amazônicas: qual o ponto de vista nativo sobre o ponto de vista. Não, por outro lado, porque o conceito nativo de ponto de vista não coincide com o conceito de ponto de vista do nativo; e porque meu ponto de vista não pode ser o do nativo, mas o de minha relação com o ponto de vista nativo. O que envolve uma dimensão essencial de ficção, pois trata-se de pôr em ressonância interna dois pontos de vista completamente heterogêneos. Os ensaios etnográficos das partes II e III deste livro são uma experiência de pensamento, e um exercício de ficção antropológica. A expressão ‘experiência de pensamento’ não tem aqui o sentido usual de entrada imaginária na experiência pelo (próprio) pensamento, mas o de entrada no (outro) pensamento pela experiência real: não se trata de imaginar uma experiência, mas de experimentar uma imaginação. A experiência, no caso, é a minha própria, como etnógrafo e como leitor da bibliografia etnológica sobre a Amazônia indígena, e o experimento que se tenta aqui é uma ficção controlada por essa experiência. Ou seja, a ficção é antropológica, mas sua antropologia não é fictícia. Em que consiste tal ficção? Ela consiste em tomar as idéias indígenas como conceitos, e em extrair dessa decisão suas consequências: determinar o solo pré-conceitual ou o plano de imanência que tais conceitos pressupõem, os personagens conceituais que eles acionam, e a matéria do real que eles põem. Tratar essas idéias como conceitos não significa, note-se bem, que elas sejam objetivamente determinadas como outra coisa, outro tipo de objeto atual. Pois tratá-las como cognições individuais, representações coletivas, atitudes proposicionais, crenças cosmológicas, esquemas inconscientes, complexos textuais, disposições encarnadas e assim por diante — estas seriam outras tantas ficções teóricas, que aqui se escolheu não acolher. [ver Anne-Christine Taylor 1993, The soul’s body, que ensaia argumentos eloquentemente convergentes com estes, especialmente in fine] Assim, este livro não é, nem um estudo de ‘mentalidade primitiva’ (supondo que tal noção ainda tenha um sentido), nem uma análise dos ‘processos cognitivos’ indígenas (supondo que estes sejam acessíveis, no presente estado do conhecimento psicológico e etnográfico): seu objeto é menos o modo de pensar indígena que os objetos desse pensar, o mundo possível que seus conceitos projetam. Não se trata, tampouco, de um ensaio etno-sociológico sobre uma certa visão de mundo. Primeiro, porque não há mundo pronto para ser visto, um mundo antes da visão, ou antes, da divisão entre o visível (ou pensável) e o invisível (ou pressuposto) que institui o horizonte de um pensamento. Segundo, porque tomar as idéias como conceitos é recusar sua explicação em termos da noção transcendente de contexto (ecológico, econômico, político etc.), em favor da noção imanente de problema, de campo problemático onde as idéias estão implicadas. Não se trata, por fim, de propor uma interpretação — uma hermenêutica, diria Lévi-Strauss — do pensamento ameríndio, mas de realizar uma experimentação com ele, e portanto com o nosso: “every understanding of another culture is an experiment with one’s own” (Wagner 1981: 12). Naturalmente, (ver adiante), every misunderstanding of [no duplo sentido de of?] another culture is an understanding of our own… Tomar as idéias indígenas como conceitos é afirmar uma intenção antipsicologista, pois o que se visa é uma imagem de jure do pensamento, irredutível à cognição empírica, ou à análise empírica da cognição feita em termos psicológicos [ou psicanalíticos: ver o arrazoado da Potière, desde a p. 215-16 em diante] A jurisdição do conceito é extraterritorial às faculdades cognitivas e aos estados internos dos sujeitos: os conceitos são objetos ou eventos intelectuais, não estados ou atributos mentais. Eles certamente ‘passam pela cabeça’ (ou, como se diria em inglês, ‘cruzam a mente’): mas eles não ficam lá, e sobretudo, não estão lá prontos — eles são inventados. Deixemos as coisas claras. Não acho que os índios americanos cognizem diferentemente de nós, isto é, que seus processos ou categorias ‘mentais’ sejam diferentes dos de quaisquer outros humanos. Não é o caso de imaginar os índios como dotados de uma neurofisiologia peculiar, que processaria diversamente o diverso. No que me concerne, penso que eles pensam exatamente ‘como nós’; mas penso também que o que eles pensam, isto é, os conceitos que eles se dão, as ‘descrições’ que eles produzem, são muito diferentes dos nossos — e portanto que o mundo descrito por esses conceitos é muito diverso do nosso. No que concerne aos índios, penso que eles pensam que todos os humanos, e além destes, muitos outros sujeitos não-humanos, pensam exatamente ‘como eles’, mas que isso, longe de produzir (ou resultar de) uma convergência referencial universal, é exatamente a razão das divergências de perspectiva. A noção de conceito supõe uma imagem do pensamento como atividade distinta da cognição, e como outra coisa que um sistema de representações. A presente discussão do pensamento indígena, assim, não visa nem o saber indígena e suas representações mais ou menos verdadeiras sobre o real — o ‘indigenous knowledge’ hoje tão disputado no mercado global de representações —, nem a cognição indígena e suas categorias mentais, cuja maior ou menor representatividade, do ponto de vista das faculdades da espécie, as ciências do espírito não se cansam de explorar. Nem representações, individuais ou coletivas, racionais ou (‘aparentemente’) irracionais, que exprimiriam parcialmente estados de coisas anteriores e exteriores a elas; nem categorias e processos cognitivos, universais ou particulares, inatos ou adquiridos, que manifestariam propriedades de uma coisa do mundo, seja ela a mente ou a sociedade — o objeto deste livro são os conceitos indígenas, os mundos que eles constituem (mundos que assim os exprimem), o fundo virtual de onde eles procedem e que eles pressupõem. Os conceitos, ou seja: as idéias e os problemas da ‘razão’ indígena, não suas categorias do ‘entendimento’. Como terá ficado claro, a noção de conceito tem (ou gostaria de ter) aqui um sentido bem determinado. Tomar as idéias indígenas como conceitos significa tomá-las como dotadas de uma significação propriamente filosófica, ou como potencialmente capazes de um uso filosófico. Decisão irresponsável, dir-se-á, tanto mais que não são só os índios que não são filósofos, mas, sublinhe-se com força, ainda menos o autor. Como aplicar, por exemplo, a noção de conceito a um pensamento que, aparentemente, nunca achou necessário debruçar-se sobre si mesmo, e que remeteria antes ao esquematismo fluente e variegado do símbolo, da figura e da representação coletiva que à arquitetura rigorosa da razão conceitual? Não existe um bem conhecido abismo histórico e psicológico, uma “ruptura decisiva” entre a imaginação mítica e o universo da racionalidade ocidental (Vernant [1966]: 229)? Entre a bricolagem do signo e a engenharia do conceito (Lévi-Strauss 1962b)? Entre a transcendência paradigmática da Figura e a imanência sintagmática do Conceito (Deleuze & Guattari 1991)? Entre uma economia intelectual de tipo imagístico-mostrativa e outra de tipo doutrinal-demonstrativa (Whitehouse 2000)? @E NATURALMENTE HORTON E O CONTRASTE OPEN/CLOSED; E GOODY E SUA DICOTOMIA ENVERGONHADA, O ORAL E O ESCRITO — dar um pau em Goody; e BOYER e a ‘interação tradicional’, fundamentalmente anti-teórica, baseada na memória episódica, na ostensão etc.etc. @ Bem, quanto a tudo isso, que é tributário mais ou menos direto de Hegel, tenho algumas dúvidas. E antes disso, tenho meus motivos para falar em conceito. O primeiro deles decorre da decisão de tomar as idéias indígenas como situadas no mesmo plano que as idéias antropológicas. A experiência proposta aqui, dizia eu acima, começa por afirmar a equivalência de direito entre os discursos do antropólogo e do nativo, bem como a condição mutuamente constituinte desses discursos, que só acedem como tais à existência ao entrarem em relação de conhecimento. Os conceitos antropológicos atualizam tal relação, e são por isso completamente relacionais, tanto em sua expressão como em seu conteúdo. Eles não são, nem reflexos verídicos da cultura do nativo (o sonho positivista), nem projeções ilusórias da cultura do antropólogo (o pesadelo construcionista). O que eles refletem é uma certa relação de inteligibilidade entre as duas culturas, e o que eles projetam são as duas culturas como seus pressupostos imaginados. Eles operam, assim, um duplo desenraizamento: são como vetores sempre a apontar para o outro lado, interfaces transcontextuais cuja função é representar, no sentido diplomático do termo, o outro no seio do mesmo, lá como cá. Os conceitos antropológicos, em suma, são relativos porque são relacionais — e eles são relacionais porque são relatores. Tal origem e função relacional costuma vir marcada na ‘assinatura’ característica desses conceitos por uma palavra estranha: mana, totem, kula, potlatch, tabu, gumsa/gumlao… Outros conceitos, não menos autênticos, portam uma assinatura etimológica que evoca antes as analogias entre a tradição cultural de onde emergiu a disciplina e as tradições que são seu objeto: dom, sacrifício, parentesco, pessoa… Outros, enfim, igualmente legítimos, são invenções vocabulares que procuram generalizar dispositivos conceituais dos povos estudados — animismo, oposição segmentar, troca restrita, cismogênese… —, ou, inversamente, desviam para o interior de uma economia teórica específica certas noções difusas de nossa tradição — proibição do incesto, gênero, símbolo, cultura… —, buscando universalizá-las. Vemos então que numerosos conceitos, problemas, entidades e agentes propos-tos pelas teorias antropológicas se originam no esforço imaginativo das sociedades mesmas que elas pretendem explicar. Não estaria aí a originalidade da antropologia, nesta sinergia relacional entre as concepções e práticas provenientes dos mundos do ‘sujeito’ e do ‘objeto’? Reconhecer isso ajudaria, entre outras coisas, a mitigar nosso complexo de inferioridade frente às ‘ciências naturais’. Como observa Latour: A descrição do kula se equipara à descrição dos buracos negros. Os complexos sistemas de aliança são tão imaginativos como os complexos cenários evolutivos propostos para os genes egoístas. Compreender a teologia dos aborígenes australianos é tão importante quanto cartografar as grandes falhas submarinas. O sistema de posse da terra nas Trobriand é um objetivo científico tão interessante como a sondagem do gelo das calotas polares. Se a questão é saber o que importa na definição de uma ciência — a capacidade de inovação no que diz respeito às agências que povoam nosso mundo —, então a antropologia estaria bem próxima do topo da hierarquia disciplinar… (1996a: 5). A analogia feita nessa passagem é entre as concepções indígenas e os objetos das ciências ditas naturais. Essa é uma perspectiva possível, e mesmo necessária: deve-se poder produzir uma descrição científica das idéias e práticas indígenas, como se fossem objetos do mundo, ou melhor, para que sejam objetos do mundo. (É preciso não esquecer que os objetos científicos de Latour são tudo menos entidades ‘objetivas’ e indiferentes, pacientemente à espera de uma descrição). Outra estratégia possível é a de comparar as concepções indígenas às teorias científicas, como o faz Horton, segundo sua “tese da similaridade” ([1993]: 348–54), que antecipa alguns aspectos da antropologia simétrica de Latour. Outra ainda, todavia, é a estratégia aqui adotada. Cuido que a antropologia sempre andou demasiado obcecada com a ‘Ciência’, não só em relação a si mesma — se ela é ou não, pode ou não, deve ou não ser uma ciência —, como sobretudo, e este é o real problema, em relação às concepções dos povos que estuda: seja para desqualificá-las como erro, sonho, ilusão, e em seguida explicar cientificamente como e por que os ‘outros’ não conseguem (se) explicar cientificamente; seja para promovê-las como mais ou menos homogêneas à ciência, frutos de uma mesma vontade de saber consubstancial à humanidade: assim a similaridade de Horton, assim a ciência do concreto lévi-straussiana (Latour 1991: 133-34). A imagem da ciência, essa espécie de padrão-ouro do pensamento, não é porém o único terreno, nem necessariamente o melhor, em que podemos nos relacionar com a atividade intelectual dos povos estrangeiros à tradição ocidental. @Ingold: 11. Não duas ciências (a nossa e a do concreto), mas uma poética da morada que subjaz também á nossa ciência. 25-26. Contra as duas ciências, selvagem e W. A poética da morada.@ Imagine-se uma outra analogia que a de Latour, e outra similaridade que a de Horton. Uma analogia onde, em lugar de tomar as concepções indígenas como entidades semelhantes aos buracos negros ou falhas tectônicas, tomemo-las como algo de mesma ordem que o cogito ou a mônada. Diríamos então, parafraseando a citação acima, que o conceito melanésio da pessoa como “divíduo” (Strathern 1988) é tão imaginativo como o individualismo possessivo de Locke; que compreender a “filosofia da chefia ameríndia” (Clastres [1962]) é tão importante quanto comentar a doutrina hegeliana do Estado; que a cosmogonia maori se equipara aos paradoxos eleáticos e às antinomias kantianas (Schrempp 1992); que o perspectivismo amazônico é um objetivo filosófico tão interessante como compreender o sistema de Leibniz… E se a questão é saber o que importa na avaliação de uma filosofia — sua capacidade de criar novos conceitos —, então a antropologia, sem pretender substituir a filosofia, não deixa de ser um poderoso instrumento filosófico, capaz de ampliar um pouco os horizontes tão etnocêntricos de nossa filosofia, e de nos livrar, de passagem, da antropologia dita ‘filosófica’. Na definição vigorosa de Tim Ingold (1992: 696), que é melhor deixar no original: anthropology is philosophy with the people in. Por ‘people’, Ingold entende aqui os “ordinary people”, as pessoas comuns (loc.cit.); mas ele está também jogando com o significado de ‘people’ como ‘povo’, e mais ainda, como ‘povos’. Uma filosofia com outros povos dentro, então: a possibilidade de uma atividade filosófica que mantenha uma relação com a ‘não-filosofia’ — a vida — de outros povos do planeta, além de com a nossa própria. Não as ‘pessoas comuns’, portanto, mas os ‘povos incomuns’, aqueles que estão fora de nossa esfera de ‘comunicação’. Se a filosofia ‘real’ abunda em selvagens imaginários, a geofilosofia visada pela antropologia faz uma filosofia ‘imaginária’ com selvagens reais. Imaginary gardens with real toads in them. Note-se, na paráfrase que fizemos mais acima, o deslocamento que importa. Agora não se trataria mais, ou apenas, da descrição antropológica do kula (enquanto forma melanésia de socialidade), mas do kula enquanto descrição melanésia (da ‘socialidade’ como forma antropológica); ou ainda, seria preciso continuar a compreender a “teologia australiana”, mas agora como constituindo ela própria um dispositivo de compreensão; do mesmo modo, os complexos sistemas de aliança ou de posse da terra deveriam ser vistos como imaginações sociológicas indígenas. É claro que será sempre necessário descrever o kula como uma descrição, compreender a religião aborígene como um compreender, e imaginar a imaginação indígena: é preciso transformar as concepções em conceitos, extraí-los delas e devolvê-los a elas. E um conceito é uma relação complexa entre concepções, um agenciamento de intuições pré-conceituais; no caso da antropologia, as concepções em relação incluem, antes de mais nada, as do antropólogo e as do nativo — relação de relações. Os conceitos nativos são os conceitos do antropólogo. Por hipótese. ‘Filosofia primitiva’, então? Não exatamente. Ver citação de Lienhardt in Asad, infra. Roy Wagner, desde seu The Invention of Culture, foi um dos primeiros antropólogos que soube radicalizar a constatação de uma equivalência entre o antropólogo e o nativo decorrente de sua comum condição cultural. Do fato de que a aproximação a uma outra cultura só pode se fazer nos termos daquela do antropólogo, Wagner conclui que o conhecimento antropológico define-se por sua “objetividade relativa” (op.cit.: 2). Isso não significa uma objetividade deficiente, isto é, subjetiva ou parcial, mas uma objetividade intrinsecamente relacional, como se depreende do que segue: A idéia de cultura […] coloca o pesquisador em posição de igualdade com aquele que ele pesquisa: ambos ‘pertencem a uma cultura’. Como cada cultura pode ser vista como uma manifestação específica […] do fenômeno humano, e como jamais se descobriu um método infalível de ‘graduar’ diferentes culturas e arranjá-las em tipos naturais, assumimos que cada cultura, como tal, é equivalente a qualquer outra. Tal postulado chama-se ‘relatividade cultural’. […] A combinação dessas duas implicações da idéia de cultura, isto é, o fato de que os antropólogos pertencemos a uma cultura (objetividade relativa) e que somos obrigados a postular que todas as culturas se equivalem (relatividade cultural), leva-nos a uma proposição geral a respeito do estudo da cultura. Como atesta a repetição da idéia de ‘relativo’, a apreensão de outra cultura envolve o relacionamento [relationship] entre duas variedades do fenômeno humano; ela visa a criação de uma relação intelectual entre elas, uma compreensão que inclua a ambas. A idéia de ‘relacionamento’ é importante aqui porque é mais apropriada a essa aproximação de duas entidades (ou pontos de vista) equivalentes que noções como ‘análise’ ou ‘exame’, que traem uma pretensão a uma objetividade absoluta (Wagner 1981: 2-3). Ou, como diria Deleuze: não se trata de afirmar a relatividade do verdadeiro, mas sim a verdade do relativo. É digno de nota que Wagner associe a noção de relação à de ponto de vista (os termos relacionados são pontos de vista), e que essa idéia de uma verdade do relativo defina justamente o que Deleuze chama de ‘perspectivismo’. Veja-se, desde já, como o perspectivismo não é um relativismo — afirmação de uma relatividade do verdadeiro —, mas um relacionalismo — a verdade do relativo é a relação. ’ Indaguei o que aconteceria se recusássemos a vantagem epistemológica do discurso do antropólogo sobre o do nativo; se entendêssemos a relação de conhecimento como suscitando uma modificação, necessariamente recíproca, nos termos por ela relacionados, isto é, atualizados. Isso é o mesmo que perguntar: o que acontece quando se leva o pensamento nativo a sério? Quando o propósito do antropólogo deixa de ser o de explicar, interpretar, contextualizar, racionalizar esse pensamento, e passa a ser o de o utilizar, tirar suas consequências, verificar os efeitos que ele pode produzir no nosso? O que é pensar o pensamento nativo? Pensar, digo, sem pensar se aquilo que pensamos (o outro pensamento) é “aparentemente irracional”, ou pior ainda, naturalmente razoável, mas pensá-lo como algo que não se pensa nos termos dessa alternativa, algo inteiramente alheio a esse jogo? Levar a sério é, para começar, não neutralizar. É, por exemplo, pôr entre parênteses a questão de saber se e como tal pensamento ilustra universais cognitivos da espécie humana, explica-se por certos modos de transmissão socialmente determinada do conhecimento, exprime uma visão de mundo culturalmente particular, valida funcionalmente a distribuição do poder político, e outras tantas formas de neutralização do pensamento alheio. Suspender tal questão ou, pelo menos, evitar encerrar a antropologia nela; decidir, por exemplo, pensar o outro pensamento apenas (digamos assim) como uma atualização de virtualidades insuspeitas do pensar. Não se trata assim de explorar alguma mística ‘primitive philosophy’, “but the further potentialities of our thought and language” (Lienhardt in Asad WC p. 159) — todo understanding de uma cultura, etc., e vice-versa. Levar a sério significaria, então, ‘acreditar’ no que dizem os índios, tomar seu pensamento como exprimindo uma verdade sobre o mundo? De forma alguma; esta é outra questão mal colocada. Para crer ou não crer em um pensamento, é preciso primeiro imaginá-lo como um sistema de crenças. Mas os problemas autenticamente antropológicos não se põem jamais nos termos psicologistas da crença, nem nos termos logicistas do valor de verdade, pois não se trata de tomar o pensamento alheio como uma opinião, único objeto possível de crença ou descrença, ou como um conjunto de proposições, únicos objetos possíveis dos juízos de verdade. Sabe-se o estrago causado pela antropologia ao definir a relação dos nativos com seu discurso em termos de crença — a cultura vira uma espécie de teologia dogmática —, ou ao tratar esse discurso como uma opinião ou como um conjunto de proposições — a cultura vira uma teratologia epistêmica: erro, engano, ilusão, ideologia… Como observa Latour (1996b: 15), “a crença não é um estado mental, mas um efeito da relação entre os povos” — e o tipo mesmo do efeito que não se pretende produzir aqui. A frase de Latour vem a calhar, pois trata-se justamente de substituir, nas páginas que seguem, a linguagem do estado (ou atitude) mental pela do efeito relacional, e não apenas para a “relação entre os povos”. O animismo, por exemplo. O Vocabulário de Lalande, que não se mostra, quanto a isso, muito destoante face a estudos psico-antropológicos recentes sobre o tópico, define o animismo (s.v.) nestes exatos termos: como um “estado mental”. Mas o animismo ameríndio pode ser tudo, menos isso. Ele é uma imagem do pensamento, que reparte o fato e o direito, o que cabe de direito ao pensamento e o que remete contingentemente aos estados de coisas; é, mais especificamente, uma convenção de interpretação (Strathern 1999a: 239) que pressupõe a personitude formal do que há a interpretar, fazendo assim do pensamento uma atividade e um efeito da relação (‘social’) entre o pensador e o pensado. Seria apropriado dizer que, por exemplo, o cartesianismo ou o jusnaturalismo são estados mentais? O mesmo (não) se diga do animismo amazônico: ele não é um estado mental dos sujeitos individuais, mas um dispositivo intelectual transindividual, que toma, aliás, os ‘estados mentais’ dos seres do mundo como um de seus objetos. Ele não é uma condição da mente do nativo, mas uma ‘teoria da mente’ aplicada pelo nativo, um modo de resolver, ou melhor, de sequer colocar — de deslocar — o problema eminentemente filosófico das ‘outras mentes’. Se não se trata de descrever o pensamento indígena americano em termos de crença, tampouco então é o caso de relacionar-se a ele sob o modo da crença — seja sugerindo com benevolência seu ‘fundo de verdade’ alegórico (uma alegoria social, como para os durkheimianos, ou natural, como para os ‘materialistas culturais’), seja, pior ainda, imaginando que ele daria acesso à essência íntima e última das coisas, detentor que seria de uma ciência esotérica infusa. “Uma antropologia que … reduz o sentido [meaning] à crença, ao dogma e à certeza cai forçosamente na armadilha de ter de acreditar ou nos sentidos nativos, ou em nossos próprios” (Wagner 1981: 30). O plano do sentido não é povoado por crenças psicológicas ou proposições lógicas, e o ‘fundo’ contém outra coisa que verdades. Nem uma forma da doxa, nem uma figura da lógica — nem opinião, nem proposição —, o pensamento nativo é aqui tomado como atividade de simbolização ou prática de sentido: como dispositivo auto-referencial ou tautegórico de produção de conceitos, isto é, de “símbolos que representam a si mesmos” (Wagner 1986).

O.E.D. 1825 Coleridge Aids Refl. 199 The base of Symbols and symbolical expressions; the nature of which as always tautegorical (i.e. expressing the same subject but with a difference) in contra-distinction from metaphors and similitudes, that are always allegorical (i.e. expressing a different subject but with a resemblance). Esta idéia de “same subject with a difference” é uma perfeita definição do perspectivismo.

Recusar-se a pôr a questão em termos de crença parece-me um traço crucial da decisão antropológica. Para marcá-lo, reevoquemos o Outrem deleuziano. Outrem é a expressão de um mundo possível; mas este mundo deve sempre, no curso usual das interações sociais, ser atualizado por um Eu: a implicação do possível em outrem é explicada por mim. Isto significa que o possível passa por um processo de verificação, que dissipa entropicamente sua estrutura. Quando desenvolvo o mundo exprimido por outrem, é para validá-lo como real e ingressar nele, ou então para desmenti-lo como irreal: a ‘explicação’ introduz, assim, o elemento da crença. Descrevendo tal processo, Deleuze indicava a condição-limite que lhe permitiu a determinação do conceito de Outrem: [E]ssas relações de desenvolvimento, que formam tanto nossas comunidades como nossas constestações com outrem, dissolvem sua estrutura, e a reduzem, em um caso, ao estado de objeto, e, no outro, ao estado de sujeito. Eis por que, para apreender outrem como tal, sentimo-nos no direito de exigir condições especiais de experiência, por mais artificiais que fossem elas: o momento em que o exprimido ainda não possui (para nós) existência fora do que o exprime — Outrem como expressão de um mundo possível (1969a: 335). E concluía recordando uma máxima fundamental de sua reflexão: A regra que invocávamos anteriormente: não se explicar demais, significava antes de tudo não se explicar demais com outrem, não explicar outrem demais, manter seus valores implícitos, multiplicar nosso mundo povoando-o de todos esses exprimidos que não existem fora de suas expressões (ibid.) A lição pode ser aproveitada pela antropologia. Manter os valores de outrem implícitos não significa celebrar algum mistério transcendente que eles encerrem; significa a recusa de atualizar os possíveis expressos pelo pensamento indígena, a deliberação de guardá-los indefinidamente como possíveis — nem desrealizando-os como fantasias dos outros, nem fantasiando-os como atuais para nós. A experiência antropológica, nesse caso, depende da interiorização formal das “condições especiais e artificiais” de que fala Deleuze: o momento em que o mundo de outrem não existe fora de sua expressão transforma-se em uma condição eterna, isto é, interna à relação antropológica, que realiza esse possível como virtual. Se há algo que cabe de direito à antropologia, não é a tarefa de explicar o mundo de outrem, mas a de multiplicar nosso mundo, “povoando-o de todos esses exprimidos que não existem fora de suas expressões”. Pois não podemos pensar como os índios; podemos, no máximo, pensar com eles. E a propósito — tentando só por um momento pensar ‘como eles’ —, se há uma mensagem clara do perspectivismo indígena, é justamente a de que não se deve jamais tentar atualizar o mundo tal como exprimido nos olhos alheios.