A Onça e a Diferença

O que se come e/é o que se vê

  • “Segundo o informante [Antonio Guzmán], um jaguar, de qualquer espécie que devore um ser humano, come primeiramente os olhos de sua vítima, e muitas vezes se contenta com isso. Na verdade, o olho não representa, aqui, o órgão da visão, mas um princípio seminal que, por esse meio, o jaguar incorpora a si” (Reichel-Dolmatoff 1973: 245; Desana; tr.fr.).
  • Que se trate realmente de devorar o "princípio seminal", eis aí algo sobre o qual eu não juraria. Mas que aí está um bom exemplo de compressão fusional da "dialética primária dentre o ver e o comer", não há dúvida (cf. G. Mentore [1993: 29] sobre os Waiwai: ‘the primary dialectics is one between seeing and eating’). E é interessante ver a nossa metáfora "comer com os olhos" (expressão que descreve sobretudo a concuspicência sexual) ser literalizada e invertida: se nós comemos com os olhos, as onças comem-nos os olhos (que seriam um princípio seminal!); estes olhos que, como se diz no Brasil, "esta terra há de comer".


  • Na tese de doutorado de Aristóteles Barcelos Neto (2004), p. 45, lê-se: “pessoas desconhecidas estavam a lhe [Atamai] oferecer cuias cheias de sangue para que ele bebesse. Atamai tinha certeza de que essas pessoas eram apapaatai.”
  • Eu diria que essas pessoas são onças, i.e. espíritos e onças, i.e. anti-humanos para quem sangue é mingau de mandioca.
  • A tese prossegue: “A despeito de todo esforço dos médicos para curá-lo de uma grave infecção nos olhos...”
  • E com efeito, no parágrafo seguinte, segue-se a narrativa: “Quando meu tio (Atamai) chegou na aldeia, Pakairu (sua esposa) levou uma kamalupo (panela grande usada em pagamentos rituais e xamânicos) e um colar bem grosso de miçangas para o meu irmão, Ulepe. — “Primo, você pode ver meu marido? Seus olhos estão doendo de novo. Ele sonha que está comendo carne de anta, de tamanduá, de veado. Ele diz que alguém está trazendo comida e cuia cheia de sangue de animal para ele beber.” Aí Ulepe fumou muito e começou a ver Tankwara. Ele estava vendo Atamai junto com Tankwara.Os outros apapaatai que Itsautaku (um importante xamã wauja) viu, Ulepe também viu. — “São as Tankwara Yanumaka nãu (i.e. Onças clarinetistas) que estão fazendo mal para o teu marido. Atujuwá que está com ele é Onça também. É Onça que está dando sangue para ele beber."


  • Na tese de doutorado de Eduardo Kohn (2002), p. 133, lê-se: "Ávila [Quechua da floresta] myths push perspectivism to its logical extreme. Several myths images explore how perspectivism can reveal moments of alienation ond the break down of self-knowledge. This is evident in the myth regarding juri juri demons [macacos-da-noite, Aotus sp., primatas noturnos de olhos enormes e esbugalhados] that I have discussed earlier [v. p. 117] ... This myth begins with an episode in which ten hunters make fun of the monkeys they have hunted and are punished for this by the juri juri demon. This demon eats their eyes out while they are spleeping."
  • Ou seja, uma perda radical de visão por cegueira prévia à natureza perspectivista das relações. O tema das consequências fatídicas do deboche da caça é um clássico (evocado em outro contexto por TSL na página O solo etnográfico (2)).
  • Idem, p.203: "When [jaguars] encounter people in the forest they are always said to make eye contact. [...] I should also note that one of the ways in which people acquire jaguar souls is through an application of a jaguar canine or incisor tooth dipped in hot peppers to the tear duct. Jaguar teeth that are intact and have not yet developed hairline fractures contain the souls of jaguars. People can absorb this - with the aid of hot peppers - through the conduit of the eyes."
  • Ou seja, uma aplicação radical da "dialética entre o ver e o comer". Olho por dente, dente por olho.


  • No projeto de qualificação de Joana Miller (2005), lê-se: "Mas os Mamaindê acrescentam, ainda, que, embora só o xamã se case com uma mulher-onça, todos eles possuem uma oncinha (yanã weikdu, onça filhote) dentro do dente que é responsável pela vontade de comer carne (widagu). Este dente é chamado de “dente de onça” (yanãwidu). Durante o sonho a oncinha pode sair de dentro do dente e vagar pelo mato. Se ela não voltar, a pessoa fica muito fraca e adoece, pois não se pode viver sem a oncinha no dente. Neste caso, cabe ao xamã procurar a oncinha perdida e reconduzi-la até o corpo da pessoa já que, em condições normais, ele é o único que pode enxergá-la. Neste contexto, os Mamaindê dizem que a oncinha (yanãweikdu) é o nosso espírito (nusa yauptidu). Devo notar, portanto, que a noção de espírito (yauptidu) inclui, como vimos, a noção de duplo, ou sombra, a capacidade de ter consciência e memória que define um sujeito e está relacionada à posse dos enfeites corporais, e também a fome de carne que, aos olhos do xamã, é o resultado da vontade de uma onça alojada dentro do dente."


  • Trecho da meditação Mbyá que acompanha Profetas na Selva (Clastres 2003: 183):
quanto aos que se levantam, em sua totalidade,
é para seu alimento futuro que dirigem a atenção de seu olhar, todos eles;
e porque a atenção de seu olhar se dirige para seu alimento futuro,
são eles que existem, todos eles.


Sobre "perspectiva"

"What... does the anthropologist do in the face of deliberate provocations to vision?" (Strathern 1995).
  • Most Ameridian cultures evince a visual bias of their own (not to be confused of our own visualism: ver Smith 1998 p. 413 et passim; Jay p. 9, para a distinção entre a ênfase na visão e os regimes de visualidade; Ingold 2000 para essa mesma distinção; a confusão aqui é a de sempre, entre o empírico e o transcendental. Ver também Gender of the Gift p. 361 nota 24, importante.). Embora às vezes não fique muito claro se a imagistica visual empregada na caracterização da cosmologia indígena deriva desta ou do próprio antropólogo (e.g. Brown 1986; ver a crítica a EVC, aqui, por Ameziane 2000: 4), em outros claros está óbvio que se trata de um viés nativo: vision is often the model of perception and knowledge (Overing 1985 [Mummy] p. 177 n.31: “The Piaroa privilege the verity of sight over other senses”; Mentore 1993; Alexiades 1999: 239; idem 2000; Surralès 2003); shamanism is laden with visual concepts (Chaumeil 1983; Roe 1993: 139-41: a importância dos espelhos e cristais nessas culturas.) Importância dos cristais no xamanismo. Perspectivismo dos espelhos: os espelhos virados no começo dos tempos, que impedem a visão clara dos humanos na caça. Nota sobre a difusão desse tema do cristal como emblema do xamanismo na Amazônia.
  • Gallois 1984–85; Townsley 1993; Kelly 2003: 236; Albert 1993; Copenawa 2000, 2003 ["O pó do yãkõanahi é a comida dos espíritos. Quem não o 'bebe' assim fica com olhos de fantasma e não vê nada. Os xapiripë dançam juntos sobre grandes espelhos que descem do céu"]; on Maya shamanism, see E. Vogt citado in B. Roullet p.12, colóquio maya); in many parts of Amazonia, hallucinogenic drugs are used as a ‘deliberate provocation’ of visions; more generally, the distinction between the visible and the invisible (Kensinger 1995: 207; Lagrou 1998: 52 ["The fundamental distinction in Cashinahua ontology between visibility and invisibility"]; Gray 1996: 115, 177) seems to play a major ontological-cum-epistemological role; we might also recall the emphasis on the decoration and exhibition of bodily and object surfaces, the use of masks, etc. (See Gow 1997 for an insightful analysis of vision in an Amazonian culture). (O que não nos impede, sem dúvida, ou mesmo nos obriga, de/a imaginar "uma perspectiva de outra ordem que a visual" (Oswald de Andrade)).
  • A ênfase dos musicologos em uma world hearing mais que em uma worldview. Encerrar essa discussão sem sentido sobre qual o sentido dominante: ver Ingold 2000 cap. 14; ver Ginzburg 2001 cap. 7.
  • To see the other (our objectifying ‘gaze’, the seer as subject, the seen as object) versus to see as the other (perspectivism, the subjectifying gaze). See A. Reed (JRAI 5/1: 50-51) on the intersubjective gazing and M. Strathern; see David Smith in American Ethnologist 25/3: 412-432, on Athapaskan way of knowing and visual language@ Ingold 42. A visão de mundo e a visão no mundo.
  • Ver ainda Surralès 2001 p. 30-31 sobre a preeminência da visão entre os Jívaro e Candoshi
  • Ver Gell Art & Agency pp.135ff sobre os olhos como instrumento de ‘animação’ dos ídolos, e sobre o olhar intersubjetivo, algumas pps. antes etc.@
  • Sobre a arbitrariedade do contraste ocidental entre visão e audição, ver Cesarino, ‘Imagens’, sobre os Pano: Unindo sinestesia e estereoscopia, tais yora quene (cantos-desenho) nos mostram serem inadequadas distinções estanques de nosso léxico analítico (tais como ‘padrões’ ou ‘canções’) para o regime intertradutivo e transformacional que permeia os processos ameríndios de personificação: outro indício de que o termo ‘canto xamanístico’ não tem aqui senão o status de uma ficção heurística que se quer ilustrativa da replicação e agência xamanísticas.
  • Tese Aristóteles Barcelos Neto 2004 p. 207: “…tem uma correspondência simultânea com a música (Gebhart-Sayer, 1985; Lagrou, 1998, 2002). Nos mundos ameríndios, música e imagem são, muitas vezes, princípios indissociáveis de materialização do (no) mundo.
  • E senão, ver este trecho da tese de JA Kelly:
"When doctors use a stethoscope to discern a type of respiratory affection they hear what shaporis see.
“JA: Do they say [shaporis] how they see the illness [Sp. enfermedad]?
“—Yes…the shaporis say if there is shawara they break it and kill it first…little by little if there is another illness, well they kill it too. Doctors don’t, doctors don’t see it, they only hear it with the stethoscope, they only hear it, but shaporis do, shaporis do see…”''
  • In some cases, the notion of ‘perspective’ or ‘point of view’ is literally and indigenously expressed. Consider this passage by M.–F. Guédon (1984b: 204):
  • One of the first Tsimshian women I have met who is still involved today in shamanism has explained to me that it is not the atiasxw [the healer’s helper, the embodiment of his gift: an object that serves as the shaman’s tool] as object that matters but the methods used to place the power in proper focus with the help of the atiasxw. In her case, her power is the rope. One may think that a rope can be used to tie or to pull, but hers is not a material rope, it is an atiasxw, that is, as she explains it, a ‘point of view’. If she is looking at a sick person in a normal way, she knows she cannot get through (not only to the sick person but also to herself), that there is nothing she can do to help the person. Her idea is to shift the point of view: she would imagine herself as a rope, ‘a big rope of light going from way, way back to way, way in the future. As a rope I can do something. I can be there as a rope and there would be that other rope (the patient) with a big knot (the disease)’. […] We may note that she is not actually transformed into a rope […] The atiasxw is simply used as a point of view.
  • It might be argued that this woman had been ‘exposed’ to Western idioms and concepts, is probably literate, and a very sophisticated person. Perhaps. Be that as it may, she chose this particular notion of a point of view; she did not say the rope was a metaphor, a symbol, or a manner of speaking. Indeed, the rope was definitely not a manner of speaking — but, rather, a way of thinking and a mode of acting.
  • The Wari’ of Brazilian Amazonia, who are very likely unaware of what ‘point of view’ means in Portuguese, also emphasize sight, and here directly in the context of human/animal perspectival differences:
  • Shamans possess two simultaneous bodies, one human, the other animal. They can alternate their points of view by manipulating their sense of sight. When he wishes to change his vision, a shaman rubs his eyes for a few seconds: if he was seeing humans as animals — this being the point of view of his animal body —, then he starts seeing them as humans; if he was seeing some particular animal as a person, then he will start seeing it as an animal and will then feel free to kill and eat it. The problem, as Topa explained to me, is that these different points of view alternate too quickly, and a shaman always runs the risk of suddenly realizing that the animal he had just killed was actually some relative of his. [...] Orowan, who is a shaman, told me he made this ‘mistake’ once, while he was in his jaguar body: he killed and ate a man because he saw him from the jaguar’s point of view, as an enemy or game. (Vilaça 1997: 25–26).
  • This same emphasis on the eyes and sight is clearly expressed in the most developed non-Ameridian example of perspectivism, the Chewong of Malaysia:
  • Much of Chewong morality is expressed through directives involving food which in turn are predicated upon how each species actually sees reality. This is directly attributable to the quality of their eyes, which are subtly different in each case. The way one species sees another is dependent upon what constitutes food for them. Thus, when human beings see a monkey’s body they see it as meat; when a tiger sees a human body it sees it as meat. A bas (a group of harmful spirits) upon seeing human ruwai perceive it as meat, and so on. (Howell 1996: 133).  :::*‘[K]nowledge about self and sentient others is made available primarily through the eyes’ (Howelll 1999: 2)
  • Nota EVC. Shamans and laypersons are also distinguished on the basis of their eyes: the former have cold, the latter hot eyes. This Chewong connection between food and sight, besides illustrating the already mentioned idea that perspectivism is crucially concerned with the relational statuses of predator and prey, brings to mind a remark by G. Mentore (1993: 29) on the Waiwai of Guiana: ‘the primary dialectics is one between seeing and eating’, uma fórmula feliz, com ecos na Amazônia: ver Alexiades 1999 p. 194, sobre os edosikiana, espíritos: São invisíveis a todos exceto o xamã: quem vê um edosikiana é devorado por ele. Ver é ser visto, então, nesse caso (checar Mentore para a idéia de ver = ser visto)
  • A propósito: então a idéia de Gell sobre a ênfase aural dos povos da floresta profunda seria injustificada? Ref. (The Art of Anthropology cap.8), e discutir.
  • Podemos citar um inúmero de mitos onde a visualidade perspectiva é explicitamente tematizada: ver a coletânea dos Tariana (Upíperi Kalísi- Unirva/Foirn 2000) por exemplo, onde abundam histórias de visões cruzadas com animais, com mortos etc. O mito dos macacos que defecam em uma bacia ("História de um Desana", op.cit. p. 219-23) é especialmente engraçado e ilustrativo.Ele parece também sugerir que os animais sabem como os vemos, tanto quanto sabemos como eles nos vêem:
  • No dia seguinte, eles [os macacos] convidaram o Maku a ir com eles procurar mais ingás: '—Vem buscar mais ingás com a gente', disseram.'—Eu vou com eles buscar mais ingás', disse para a irmã. '—Eu vou também', ela respondeu. Eles foram juntos. Apanharam muitas ingás, que trouxeram para a maloca.Naquela hora, eles já não eram mais macacos. Eram gente!Chegando na maloca, eles fizeram uma dança para o pai morto do menino. Eles estavam carregando um cesto cheio de caroços de ingás. Eles foram buscar uma bacia grande, levantaram o cesto e derramaram o seu conteúdo na bacia. Mas os Maku os viu fazer outra coisa. Ele viu os macacos sentarem na beira da bacia e defecarem dentro os caroços de ingás. É isso que ele viu com os próprios olhos. Eles fizeram manicuera, misturaram com massa de mandioca e prepararam caxiri. Depois de espremer, eles ofereceram uma cuia de caxiri para o Maku, mas este recusou-a, dizendo: '—Eu não vou tomar isso. Vocês fizeram algo de muito feio, eu vi vocês cagarem dentro da bacia. '—Não era um cesto! Você, que tem um olho diferente de nós, que vê com um olho de pessoa, pensou que a gente estava cagando os caroços de ingás dentro da bacia. Na realidade, nós estávamos derramando o conteúdo do cesto na bacia, só isso', replicaram.
  • In those Amazonian cultures where one finds the notion of multiple personal souls, the eyes are usually endowed with a soul of their own, and this eye soul is often the ‘true soul’. This is what G. Mentore says of the Waiwai (Caribs of Guiana):
  • Besides the body as a whole, only the eye possesses a distinct soul. […] At death, when detached from their corporal self, the body soul remains on the earthly plane, while the eye soul rises to the first ascending plane of kaup (the celestial spirit world). […] to know, that is, to be human, is ‘to see’ in all its various forms (1993: 31).
  • Niels Fock (1963), em sua etnografia sobre os Waiwai, também faz algumas observações sobre essa concepção de alma, "the eye soul". Ele diz: "It is explained as: "the small person one always sees in the others'eye", which one is tempted to interpret as one's own reflected image, though it may be a matter of a general impression of the eye as that which best expresses the soul of a person. The special position accorded the eyes can also be due to quite different circumstances, namely, (...) that to see is the same as being seen when it is a matter of supernatural beings. It is dangerous to be seen by a spirit; one is seen when one sees it oneself, and thus to a special degree the eyes can bring misfortune to the whole person." (p. 19)
  • The same idea can be found among the Peruvian Aguaruna (Jívaro): "there are two human souls, an eye soul residing in the pupil — this is the one that goes to the celestial world after death — and the demon-shadow iwanch that remains on earth under various animal guises" (Brown 1986: 55).
  • Among the Panoans these ideas are present in a rather more elaborate form (Kensinger 1995; Townsley 1993; McCallum 1996). In a nice prefiguration of the theory of cognitive modularity, the Cashinahua assign different modes of knowledge to different organs: skin, ears, eyes, liver, hands, genitals etc. (see Kensinger 1995: ch. 21). This modular knowledge is associated with different souls [@contra isso, ver Lagrou 1998: 85-6@]: thus skin knowledge, an attribute of the skin soul, has as its object ‘the natural world’, it is knowledge of ‘the jungle’s body spirit’, the visible, sensory aspect of things; hand knowledge refers to bodily skills, ear knowledge to social behaviour, the genitals are the source and locus of knowledge of mortality and immortality, and so on. These different bodily-based types of knowledge appear to be subsumed by a generalized ‘body spirit’ which encases the person as an outer skin (so skin-knowledge would be the dominant synecdoche). To this body knowledge the Cashinahua oppose eye knowledge, an attribute of the eye-soul, also called the ‘true soul’ or ‘real spirit’. This is the module which allows one to see ‘the true nature of people and things that make up the natural world’; it is ‘knowledge of the supernatural’ (op.cit.). The eye soul is the immortal part of the person; it is the agent in dreams and drug-induced hallucinatory experiences. McCallum (1996: 32) describes the eye soul as ‘a kind of person within the person’ — a metaphoric or iconical double then, as opposed to the metonymical and indexical partial souls of the other organs.
  • Para a idéia de que cada espécie tem “olhos diferentes”, ver o crucial mito de Medatia (Ye’cuana) registrado por M. de Civrieux, in D. Guss, The Language of the Birds, p.65, 66: “Each people have their own eyes… The people can’t understand the mawadi [anacondas] because they have different eyes…”
  • This may suffice as evidence for the centrality of vision in Ameridian cosmologies and justify my appeal to the notion of ‘perspective’. I must stress, however, that the salience of these visual idioms should not make us disregard the fact that there is more to the concept of perspective than meets the eye, and that Ameridian perspectivism uses perceptual differences to express conceptual ones: the epistemological language of ‘seeing/knowing’ the world is at the service of an ontology. What is at stake there is the relation between different ontological, not epistemological, perspectives. These differences may be expressed in visual terms, but differences are not visual as such: they are relational. (You do not ‘see a difference’ — a difference is what makes you see). The point, in short, is that perspectives do not consist in representations (visual or otherwise) of objects by subjects, but in relations of subjects to subjects. When jaguars see ‘blood’ as ‘manioc beer’, the terms of the perspectival relation are jaguars and humans: blood/beer is the ‘thing’ which relates (separates) jaguar and human ‘persons’. As M. Strathern has shown (1988, 1992), the exchange of perspectives or points of view needs not be cast in visual language, or concern vision as such. And perspectives are ‘about’ exchange, for they relate subjects or persons. (cf. supra, O. Andrade: "Uma perspectiva de outra ordem que a visual. O equivalente do milagre fisico em arte" Em arte ou, dir-se-ia no presente caso, também em ontologia.)
  • Other references to ‘perspectivism’. Include Rom Harré’s works on pronouns & people, points of view, grammar of self etc. Include Yonne Leite on Tapirapé. Include William Hanks on Mayan deixis. Include Schutz and the phenomenological ‘reciprocity of perspectives’ (cited in M. Jackson, Minima Ethnographica).
  • Ver Pedersen sobre animismo e perspectivismo mongol (checar paginação no JRAI): ‘During my fieldwork among the Darxad Mongols, I was told that if a man goes hunting and suddendly meets, for example, a mountain antelope (…), then everything that will happen from then on depends on who sees whom first. If the hunter (as subject) sees the antelope (as object) before the antelope (as subject) sees the hunter (as object), the episode is unproblematic, and the hunter is free to kill the antelope. If, however, the opposite situation occurs, all sorts of problems will arise (it is at that point too late to back out of the situation), because this will mean that the antelope is a special one; that it has power (huch). The hunter must in such a case take great care to kill the antelope in one clean shot because, if not, ‘nature’ may have an effect on him (baigalyn nölöö)a p. 65).


Perspectivas Sexuais

  • Eis duas histórias sobre o ver e o comer que poderiam apontar para uma complicação da famosa equação entre as mulheres e a caça e o predador:
  • Um sonho de um caçador Pirahã (Gonçalves 2001: 297). Um caçador sonhou que estava pescando com seu cunhado em um poço na mata, quando percebeu que estavam sendo observados por uma onça. Ele e o cunhado corriam por uma trilha muito estreita e cheia de curvas enquanto a onça os perseguia. O arco do caçador prendeu-se em um cipó, e ele, obrigado a desembaráça-lo, viu o cunhado tomar-lhe a frente e, em seguida, a própria onça aproximar-se e abocanhar seu pênis. O caçador passou a empurrar a cabeça da onça para afastá-la de seu corpo, mas se deu conta de que não estava machucando e ficou excitado. O comentário do etnógrafo dá destaque a um reajustamento do código da predação para o sexual, correlacionado a uma passagem do medo da morte para o desejo. Assim escreveu: “Imobilizado por esse desejo, [o caçador] entreg[ou] seu destino à onça”. Em um outro sonho, em que um homem coletava castanhas sozinho, a onça procedeu de modo mais evasivo. Após preparar-se, cortando um pedaço de pau para enfrentá-la, percebeu que a onça não estava decidida a atacá-lo, pois “dava voltas ao seu redor, aproximava-se, afastava-se, pulava sobre ele, imobilizava-o, não o suficiente para machucá-lo, e depois continuava dando voltas ao seu redor... O comportamento inusitado da onça, sugerindo um assédio sexual, paralisava o sonhador, que não conseguia saber se ela queria matá-lo ou não; na dúvida, não agiu. Os sonhos com onças indicam o lugar que o homem ocupa nesse tipo de interação: podem ser mortos e devorados, ou possuídos sexualmente. Desse modo, o comportamento das onças nos sonhos equivale ao das mulheres, ambas sedutoras e sexualmente agressivas" (Gonçalves 2001: 298).
  • as mulheres Pirahã são, pois, retratadas como sexualmente agressivas (é este também o caso das mulheres Airo Pai, Belaunde 2005): os homens são suas ... presas? A predação e a sedução seriam os pólos macho e fêmea da Onça? Não sou capaz, porém, de aceitar que a onça do primeiro sonho pudesse não ocupar uma posição macho (... problema de identificação imaginária, certamente! será?). Fome de carne por uma onça, fome de sexo por um homem reunem-se sob uma mesma palavra em Yudjá.
  • sonhos de sexo são, em numerosas sociedades, signos de caça. Às vezes, os homens Yudjá encaram-nos como sonhos de sexo mesmo. Este seria sempre o caso daqueles sonhados por mulheres.
  • sobre a ausência de paridade sexual ver Lévi-Strauss, CC: peça cromática;neste wiki se acha indicação de presença de disparidade sexual entre caçador (macho) e presa (fêmea); --TSL 20:37, 30 Abril 2007 (UTC)


  • Perspectiva-guariba. ‘Tem uma fala antiga do guariba, que vovó vontou. Um casal de guaribas estava observando dois homens Yudjá que passavam de canoa, e o marido mostrou-os à esposa: Veja! Veja os Yudjá se enrabando! [Yudjá ixia-xiaku ñãhã doo!]. Um estava pilotando, e o outro, na proa da canoa. O guariba ficou a mostrá-los à esposa: Veja um Yudjá enrabando o outro! E você, hein, que quando está com raiva, vive dizendo que quer virar Yudjá, hein? Veja aí como eles usam enrabar-se uns aos outros. (E a narradora não se controlou em risos.) O guariba dizia isso quando os Yudjá os viram e começou então a se gabar: Os Yudjá não conseguem me flechar! Sou forte, sei fugir. A flecha dos Yudjá não é abáru [grossa, áspera (usado para pele); quereria dizer farpeado ou será gíria de guariba?] para mim. E ele cantou... [...eu sou forte, eu fujo deles...] Os Yudjá os mataram pois os guaribas não correm, agarram-se em um galho e ali ficam bem quietos! imóveis!’ [Material de campo inédito de T. S. Lima]
  • Esta história também mostra que os guaribas, ao contrário do que informou TSL neste wiki, também vêm a ser caracterizados pelos Yudjá como animais que têm conhecimento das flechas de caça. Seria, talvez, compreensível a razão pela qual a versão de que as flechas são pássaros para o guariba é mais comentada com a etnógrafa.
  • Sobre o ver e o comer é preciso também pensar nos rituais de puberdade femininos (e na reclusao). Como é comum nestes casos, a moça paumari nao pode ser vista pelos homens. Isso tem uma relação evidente com o comer com os olhos, assim como com a predação ja que, no mesmo ritual, os homens se travestem em predadores animais (ou usam objetos para 'representa-los' ou 'sê-los' -) para perseguir a moça (e tentar devora-la, sem conseguir fazê-lo - a não ser 'com os olhos', pois nunca chegam a tocar nela). No final do ritual, todos os objetos-predadores usados pelos homens(cestos-onças,leques-arraias, troncos-sucuri, cipos-cobras e roupas-patrao branco) sao destruidos (cortados em mil pedacinhos, como se faz com a carne de caça antes de cozinha-la) por estes. [Nota-se que os Paumari nao consomem carne de nenhum desses predadores, até onde eu sei]OBJ 09:29, 11 Dez 2005 (UTC).


  • Perspectiva-urubu. Esta fala antiga também é Yudjá.Seu narrador: Mareaji.
Ele andou muito com urubus. Uma vez foram muito longe da aldeia — disseram que era para caçar índios, mas estavam mesmo era caçando bichos podres: eles costumam fazer sempre assim.
Aí, quando voltavam do mato, o Yudjá mentiu para os urubus. Dizem que tinha um pau que tinha um leite igual a sangue, e ele cortou o pau, tirou o leite e passou no pé, depois falou para um urubu:
— Não vou andar mais porque furei meu pé. Vocês podem ir embora porque vou ficar aqui.
— Não, a gente não pode te deixar aqui, porque você é o [filho do] chefe da aldeia, senão nosso chefe vai brigar conosco...
Eles tinham medo do chefe deles [o capitão]. O Yudjá disse:
— Eu não vou andar mesmo, porque não dá para eu ir no caminho.
Um urubu colocou-o nas costas para carregá-lo, cada um carregava um pouco até que chegassem na canoa. Mas perto da canoa tinha um pau quebrado caído no caminho, e aí ele disse:
— Se vamos passar embaixo desse pau caído é bom você abaixar-se um pouco pra lá...
E quando se abaixou, o Yudjá enfiou o pau no rabo dele, que gritou:
— Ah, você comeu meu rabo! Você pode ficar aqui, pode morrer aqui que não vou mais te levar, não. Você é bobo!
Derrubou-o, xingou-o e foi-se embora.
Quando chegou na canoa, perguntaram-lhe pelo homem:
— Ele não quer vir, não.
— Como não pode vir?
E outro urubu foi buscá-lo, e quando ficou do mesmo jeito, o Yudjá comeu o rabo dele. Depois foi um outro: dizem que ele fez isso até acabarem os urubus que estavam na canoa. Os outros então decidiram deixá-lo lá para morrer. Chegando perto da aldeia, os urubus gritaram para as mulheres:
— Esquentem água porque parece que nós estamos ganhando nenê!
— Parece que nós vamos ter filho!
E [por sua vez] o pessoal que estava na aldeia ficou gritando assim:
— Ah, os homens estão matando índios! — o pessoal que estava na aldeia falou assim.
Quando chegaram na aldeia, eles contaram:
— Aquele cara comeu nosso rabo!
— Podem esquentar água!
Todas as mulheres esquentaram água e eles beberam água quente para matar! TSL
  • Urubus/Paumari
  • Os Paumari têm um mito que conta a historia de um rapaz que é raptado pelos urubus porque impede (flechando-os) que eles comam os restos de um pirarucu morto por seu pai. La no céu, ele é ameaçado de morte pelos urubus-pretos (o povo) que querem constantemente devora-lo. Ele é "salvo" pelo urubu-rei (o chefe), que é branco e tem olhos azuis, que quer acabar de cria-lo. Ele é assim escravizado pelo urubu-rei que quer lhe dar sua filha (que do ponto de vista dos urubus é linda e do ponto de vista dos Paumari é feia) para transforma-lo em genro. O trabalho exigido pelos urubus é, do ponto de vista Paumari, impossivel de levar a cabo (o roçado que ele tem que limpar em um dia é imenso, a canoa que ele tem que encher de peixe é grande como cinco ubadas paumari, e assim por diante). Sob ameaça de morte e devoração ele é salvo sistematicamente por primos-animais que tem pena dele e lhe oferecem uma irmã para "comer" (oficialmente eles comem comida juntos, mas o relato é propositalmente ambiguo) enquanto eles resolvem seus problemas de produção. Assim, os primos-formigas limpam o roçado (enquanto ele come com/a prima-formiga), os primos-lontras enchem a canoa de peixe (enquanto ele come com/a prima-lontra), etc.
  • A alternativa à devoração (alimentar) é a submissão e o serviçalismo (entre outros sexual). Mas neste caso, na escala da perspectiva humana - transposta no mundo dos urubus - o serviçalismo não é realizavel (por um problema de diferença de dimensões) e precisa ser realizado por Outros. [Não sei bem como pensar essa terceirização dos serviços, pois os primos-animais que ajudam o rapaz não pedem nada em troca do serviço, simplesmente entregam a irmã e executam o trabalho. Talvez a chave esteja no ultimo trecho do mito. Quando o primo-pato traz o rapaz de volta para a terra e para sua aldeia. Ele é chamado pelos pais do rapaz de "compadre" (visairi) e não mais de "primo" e ele aceita um pagamento (farinha e milho) pelo serviço]. OBJ 09:29, 11 Dez 2005 (UTC)
  • Perspectiva-Míronti, o espírito do sangue no sistema Asháninca. Homens em condição de homicídio são fêmeas; as mulheres lactantes são machos. Palavras de Belaunde (2005 p. 185): “Uno de los ejemplos etnográficos más recientes de feminización del homicida nos permite examinar más a fondo esta cuestión. Se trata del caso de la violación del homicida por el Míronti entre los asháninka (…). Durante las décadas de 1980 y 1990, en respuesta a la violenta política del movimiento maoísta Sendero Luminoso y de las Fuerzas Armadas peruanas, los rituales de homicidio asháninka que habían sido dejados de lado volvieron a resurgir. Para rondar sus territorios y salvaguardar su población, los hombres asháninka se organizaron en comités de defensa, compuestos de 20 a 40 hombres. James Regan (2003) reporta que cuando mataban a un intruso en sus tierras, todos /p.186/ los ronderos que habían participado en la matanza guardaban dieta y reclusión durante unos 8 a 15. Sólo comían yuca asada, chonta amarga y plátano verde, y mantenían la abstinencia sexual. Construían una choza en el bosque y descansaban, durmiendo solamente por turnos, porque temían que si se descuidaban el Míronti, espíritu nacido de la sangre derramada por su víctima, vendría a violarlos. El Míronti es un ser que vaga por el bosque bajo la apariencia de un tapir y tiene una percepción invertida de los géneros. Desde su punto de vista, los hombres son mujeres, y las mujeres son hombres. El matador embarazado por el Míronti nacido de la sangre de su víctima da a luz a monos o lagartijas, «se siente como una madre, lacta a su hijo, lo acaricia, lo cuida para que no llore. Si el hombre violado es traído a su casa para que lo curen, anda gritando y llorando por el amor a Míronti, lo llama a gritos para tener relaciones sexuales. Ni el curandero puede salvarlo» (Regan, 2003:77). La única manera de espantar a un Míronti es que una mujer embarazada lo ataque con un chisguete de leche de sus senos, los cuales desde el punto de vista del Míronti, son enormes testículos. Cuando, después de haber matado a alguien, los ronderos no podían guardar el debido desvelo, dieta y reclusión porque estaban forzados a continuar desplazándose en el monte, para precaverse y evitar la posibilidad de quedar embarazados cuando dormían, acudían a medidas anticonceptivas médicas modernas. Iban al puesto de salud de la localidad a solicitar que se les aplicase inyecciones anticonceptivas. «Estos hechos, por supuesto, provocaron asombro entre los militares y el personal sanitario. Un médico, sin comprender bien el pedido, les inyectó vitaminas» (Regan, 2003:76).
  • Nota bem Belaunde, p. 187: “Si bien el hombre violado da a luz y se transforma en una madre, él no se convierte en una madre de niños asháninka. Se convierte en una madre de monstruos, en un ser alienado, vuelto «otro», enamorado del espíritu de la sangre.” Ou seja: A simetria em espelho — o macho de um é a fêmea do outro — vem assim a ser complexificada pelos nascimentos monstruosos. Aproximar Míronte e o Espírito do Mel Araweté (EVC 1986): macho, fêmea, um terceiro (T. S. Lima 2004). --TSL 20:37, 30 Abril 2007 (UTC)
  • Olhada-de-mulher Dizem os Barasana (S. Hugh-Jones 1979:128; 129), parece que homens, que se as mulheres olhassem as flautas jurupari haveria um tempo de caos em que os homens se matariam uns aos outros. Dizem as mulheres não temer as flautas, mas a reação dos homens.
  • Olhada-de-gente faz desandar o cauim Araewté (EVC 1986).